merdapostagem, metacolagens
crítica a partir de Dissolução festiva: geração z, do Teatro da Matilha.
Quando Clube da Luta chegou aos cinemas, em 1999, boa parte do Teatro da Matilha ainda usava fraldas. Isso não impede que a narrativa do filme seja evocada pelo grupo em Dissolução festiva: geração z. Há uma célebre passagem na obra de David Fincher que fala sobre como aquelas figuras pertencem a uma geração sem peso na história, sem propósito ou lugar. O nazifascismo foi derrotado (é?), a Guerra Fria acabou, vivemos em uma grande aldeia global graças à internet. Nada a fazer?
Tyler Durden pode ser visto como uma representação quase arquetípica da (masculinidade na) Geração X e suas frustrações com a imperfeição do mundo e os problemas aparentemente insolucionáveis da sociedade ocidental, marcadamente dos países do Norte – ainda que seja no Sul global onde as maiores dificuldades se encontram.
Na última década do século XX, uma mesma insatisfação massificou-se junto à globalização, enquanto os Millennials cresciam conectados a um universo de possibilidades infinitas trazidas pela popularização da internet. Não estávamos mais isolados e presos em uma realidade próxima, mas poderíamos virtualmente nos movimentar em todas as direções. O excesso de escolhas trouxe consigo um excesso de promessas; e então vieram as expectativas, os fracassos e os desencantos.
Faço parte dessa geração. Aprendi a digitar em um teclado de computador bem cedo, em um jogo onde uma cidade era bombardeada por sílabas e palavras que explodiam quando eu as digitava. Frequentei o Bate-papo UOL na sala até 10 anos, e devia ser um dos poucos ali que realmente tinha essa idade. No ICQ, conversei aleatoriamente com pessoas de outros estados e continentes. Comecei a me virar no inglês para conseguir participar de jogos multiplayer online ainda pré-adolescente.
Muito estava ao nosso alcance. E isso em uma época em que esperávamos passar da meia-noite para nos conectar via dial-up pagando um pulso único de telefone. Levaria alguns anos para smartphones se popularizarem e a internet se tornar algo disponível na palma de nossas mãos o tempo todo.
Esse pequeno desvio pode parecer uma bobagem nostálgica, mas é importante inserir no texto essas marcas que carrego na fruição de Dissolução festiva. Me dar conta que a Geração Z já é adulta há algum tempo foi um dos atravessamentos de minha experiência com a obra. Curiosamente, quando cheguei ao Kasulo Espaço de Arte, uma ex-aluna comentou que eu parecia jovem. O que na hora foi motivo de alguns comentários e risadas, segue me acompanhando nesta escrita.
Enquanto o público estava chegando, observei um grupo de rapazes do bairro – estes, de fato, jovens – sentados em um parklet ao lado do espaço. Reunidos tomando um líquido transparente em uma garrafa d’água (e já não sou tão jovem a ponto de não desconfiar!), estavam ali, descontraídos. Eles também devem ser da Geração Z.
Ainda antes de subirmos para o espaço cênico, um carroceiro observava atento à ação dos performers do Teatro da Matilha. Dissolução festiva começa em algum momento antes do início; talvez quando os performers ainda estavam preparando o carro para sair, talvez enquanto uma figura mascarada andava de patinete do outro lado da rua, ou talvez mesmo quando o carro volta em um breve instante inconsequente – sucedido pela cuidadosa manobra que estaciona-o na calçada.
Abre-se o porta-malas com o clique de um botão. Dele, sai uma performer e tralhas. Equipamentos eletrônicos relativamente recentes, mas que já parecem peças de ferro-velho. Vejo um aparelho de DVD sendo marretado e penso sobre a fisicalidade das mídias atuais. Gosto muito da frase que nos lembra que guardar arquivos na nuvem é simplesmente deixá-los em um computador em outro lugar. Talvez a materialidade seja hoje uma abstração?
Enquanto o carroceiro coleta o lixo eletrônico, nos preparamos para entrar. Ele deve ter a minha idade, também um Millennial. É evidente que existem recortes socioeconômicos e culturais a serem observados nessas categorias geracionais; um intervalo de anos pode sugerir características em comum, mas dificilmente contemple toda uma população. Quando ele escuta que a sugestão é vermos o espetáculo com duração de 40 minutos em pé, ele comenta que trabalha de pé o dia inteiro para pagar a pensão de seu filho.
A arte não existe fora da realidade e ela sempre acaba por se impor. A afirmação mexeu comigo. Entrei no Kasulo me questionando sobre o mundo, a sociedade, o fazer artístico. Subindo as escadas, alguém na minha frente derruba a lata de Coca-Cola nos degraus. Na chegada ao espaço, me tranquilizo pelas janelas abertas, os ventiladores ligados, o distanciamento possível e até os performers vestindo máscaras.
Aos poucos os questionamentos se dissipam (dissolvem?) quando penso que aqueles corpos ali também existem e fazem parte da realidade. Que eles pulsam e vibram e que todos os corpos e corpas deveriam poder dançar. De algum modo, estou diante do que podem ser representações desta tal Geração Z, entre acúmulos e destruições.
Vinicius Andrade, compositor e diretor musical de Dissolução festiva, está vestido de Fred Flintstone. Ele já havia quebrado um violão na calçada, e agora divide-se entre guitarra, sintetizadores, violino e sabe-se lá mais o que. A atmosfera sonora insiste em um tipo de noise music contemporânea, frenético; tão caótico quanto elaborado, como que prenhe de sentidos e significações.
A direção geral de Tadzio Veiga encontra na parceria com Andrade a sustentação necessária para a criação que flui entre dança, performance e dança-teatro, se é que tais categorias ainda façam sentido no amálgama-liquidificador por onde caminha o Teatro da Matilha. Pois talvez aí esteja o nó de Dissolução festiva: a Geração Z, nativa digital, transita por conteúdos absolutamente diversos no arrastar de um dedo; navega entre formas e linguagens em uma velocidade dificilmente imaginada – às custas, talvez, de uma possibilidade de manter um foco de atenção prolongado, de sustentar lentidões.
Porém, nas proposições cênicas de Veiga, as ações e partituras dos performers oscilam entre máximas e mínimas intensidades. Signos se acumulam e se anulam. A única ausência sentida talvez seja a do tédio, substituído em cena pela exaustão. Corpos produzem sentidos até esgotarem-se. Não por acaso, o burnout dos Millennials em breve deve ser um legado compartilhado com os Zennials.
Dissolução festiva organiza-se em espécie de quadros sucessivos, cada um com suas velocidades, suas materialidades cênicas, suas referências. A ideia de shitposting enunciada na sinopse traz consigo uma boa chave de compreensão para o trabalho. No que veio a se tornar uma manifestação cultural, contextos são excessivamente específicos ou absolutamente inexistentes na combinação de imagens e palavras. A partir da merdapostagem, o Teatro da Matilha opera uma metacolagem em suas composições; explosões que giram em torno de si próprias ou chafurdam nas infinitas referências evocadas.
Em cena, Veiga, Carolina Gasquez, Gabriela Vinci, Giorgia Tolaini e Pedro Athié (entre outros artistas que podem compor o elenco) – todos nascidos depois de 1995 – dão corpo à fugacidade destes fragmentos que compõem teias de (sem-)sentido. É nítida a técnica dos performers, com disponibilidades corporais variadas – o contorcionismo de Veiga e Tolaini permite a criação de imagens no mínimo inusitadas.
Nessas metacolagens, tudo o que nunca nem foi sacralizado vai sendo profanado. Em certo momento, tudo parece um grande deboche muito bem elaborado. Máscaras de super-herói, chapéus de Pikachu, alguém vestida de Branca de Neve. Perucas, patinetes, vodka e luvas de boxe. Pedaços de papelão no chão para ninguém escorregar. Alguém escorrega no próprio papelão. Latas de spray organizadas ao lado de um sofá são jogadas para trás. Um bichinho de pelúcia movido à pilhas, um brinquedo Genius. Um momento de Clube da Luta.
Uma busca por propósito? O que isso significaria em 2021, navegando nas águas esquizofrênicas do capitalismo tardio? Dissolução festiva: é difícil ser mais sintético e preciso do que o próprio título do trabalho. E há o que se celebrar na percepção anárquica de que cada vez mais, menos permanece, sim.
Conceitos são ultrapassados e a própria noção de contexto parece por vezes não bastar, deixando de dar conta dessa existência dinâmica e líquida. Os corpos que dançam, lutam e cansam são físicos, festivos, melancólicos e políticos. Quando dissolvem, transbordam.
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ficha técnica DISSOLUÇÃO FESTIVA: GERAÇÃO Z Teatro da Matilha DIREÇÃO GERAL: Tadzio Veiga DIREÇÃO MUSICAL: Vinícius Andrade DIREÇÃO DE ARTE E DE CORPO: Tadzio Veiga PREPARAÇÃO CORPORAL / SUPERVISÃO: Tadzio Veiga ASSISTÊNCIA DE PREPARO CORPORAL: Giorgia Tolaini COMPOSIÇÃO MUSICAL: Vinícius Andrade PERFORMANCE DE LUZ: Evandro Zampieri (até 2020) e Giorgia Tolaini (a partir de 2021) PODERÃO COMPOR O ELENCO: Andres Mauricio, Camila Andrea, Carolina Gasquez, Gabriela Vinci, Giorgia Tolaini, Henrique Lima, Hugo Leão, Júlia Sanches, Pedro Athié e Tadzio Veiga FOTOGRAFIAS POR: Kaique Bevilacqua, Kiara, Laura Rodrigues e Paula Squaiella.