o fluir do rio é um universo que peleja
crítica de “Dezuó, breviário das águas”, do Núcleo Macabéa
foto de Cacá Bernardes
Na escrita de Rudinei Borges, poesia e dramaturgia conversam como velhos pescadores à ver o sol se pôr na beira de um rio que corre. Imerso em suas origens amazônidas, o autor cria “Dezuó”, um caboclo ribeirinho fictício, mas com muitas verdades em sua história.
O espetáculo com encenação de Patricia Gifford monta um microcosmos na instalação cenográfica de Telumi Hellen aos olhos do público. Edgar Castro, sozinho em cena (ainda que acompanhado do músico – e diretor musical – Juh Vieira), é narrador-Dezuó enquanto constrói fábulas e mundos navegando nos versos de Borges.
Entre a poesia e a materialidade, constrói com barro o chão que firma sua ancestralidade. A obra é generosa na relação estabelecida com o público, e Castro compartilha suas ações: sem sublinhar ou mastigar seus sentidos, introduz os signos que está criando de maneira hábil e serena. Dentro do octógono – que pode ser barco, pode ser represa, pode ser rio que corre – pequenas ilhas/nichos concretizam as imagens tão presentes na dramaturgia.
Nesse sentido, “Dezuó” escancara a distância entre os muitos brasis que compõem nosso país. Há uma infinidade de palavras ditas pelo intérprete que dizem respeito à uma realidade que em nada parece com a paulistana. Do necessário para acompanhar a narrativa central, bem pouco se perde – e o que se desconhece, suscita a imaginação de quem nunca foi ao Pará criar para si o que são aquelas tantas plantas e vocábulos cujos significados talvez não façam nem sentido no nosso contexto.
Castro é, assim, um mediador entre o universo ribeirinho do Tapajós e o espectador. Ainda que haja, certamente, potência em sua interpretação, é a dramaturgia e a materialidade da encenação na lida do ator com a instalação cênica que envolve o público – o que é intensificado pela trilha executada ao vivo por Vieira.
A história de Dezuó é a história de uma miríade de povos originários, caboclos e ribeirinhos de muitos estados no Brasil. Em nome do progresso, a construção de hidrelétricas os remove de suas casas, suas terras e, em tragédias que deveriam ser vistas como crimes, muitas vezes de seus entes queridos. Belo Monte é o projeto mais notório, mas são infindáveis outros que, irresponsavelmente, vão sendo tocados Brasil adentro.
Construindo a narrativa a partir de Dezuó, Borges põe em xeque o que é este defendido e alardeado progresso para aquelas e aqueles que entendem a vida de modos outros. Como Castro brinca em uma frase que anuncia os benefícios da construção, “ninguém mais precisará dormir no escuro!”. Não há uma romantização ingênua de uma vida idílica, mas sim, uma reflexão crítica acerca do que o ímpeto dito civilizatório gera em povos de culturas distintas.
O pai de Dezuó acabar indo trabalhar na construção da barragem e outros acontecimentos trazidos pela dramaturgia – como a prostituição infantil – escancara também o abandono vivido por essas populações. É na fluência poética que o discurso se estabelece enquanto crítica social.
Desse modo, é pela paciente e afetuosa construção de mundos-ilha, pelo delicado manuseio de objetos (como o barco que Castro põe à navegar no ar), que a destruição é tão dolorosa. Ainda, considerando os crimes ambientais de Mariana e Brumadinho, ver a lama tomando conta daqueles nichos cujo simbolismo se estabeleceu com tanto zelo dói como lembrar das imagens de barragens de rejeitos se rompendo.
A construção da barragem, para Dezuó, foi concretamente o fim não só de seu pai, mas de sua vida como ele conhecia. Se estabelece, então, como metáfora, a peleja que é a vida seguir seu curso como o rio que não quer se permitir interromper.