Queremos enterrar este lugar
por Nazaré Cavalcante*
crítica da peça-filme Desfazenda: me enterrem fora desse lugar, do coletivo O Bonde, produzida no contexto da oficina olhar a cena – Laboratório de Crítica Teatral, conduzida por amilton de azevedo no mês de agosto de 2021 de forma virtual no Sesc São Caetano. sete textos das pessoas participantes da ação inauguram a série vozes.
Primeira fala: há um narrador. Primeira impressão: os atores lado a lado discorrerão longas falas constituindo os enfadonhos jograis, recurso teatral que muitos grupos contemporâneos ainda recorrem para representar falas e canções de forma harmoniosa no palco. Reação: princípio de tédio. O desconfortante remexer na cadeira. Justificando: lembrança de uma básica formação acadêmica, herdada de uma educação eurocêntrica, presente nos ensinamentos aristotélicos: a dramaturgia e o enredamento são como um escamotear da ação propriamente dramática, e eliminam o momento do ator e atriz colocarem suas competências artísticas, ali direto, frente a frente com o espectador. Embora nem um pouco adepta da desagregação telúrica e cultural que a verossimilhança grega nos impôs, comungo com esse princípio, defendo que contadores(ras) de história pertencem a outro espaço que não a caixa quadrada ou na arena do palco. Gosto de ações intensamente dramáticas visceralmente mostradas pelas personagens nutridos pelos textos.
Mas não foi bem assim. Em Desfazenda: me enterrem fora desse lugar, espetáculo do grupo O Bonde, dirigido por Roberta Estrela D’Alva, apresentado em 2021, vê-se nos momentos de narratividades vestígios poéticos que acontecem no soar das vozes das personagens, integrando ao corpos de atores e atriz que tão bem se apropriaram aos recursos artísticos que intercalam a tecnologia que o século XXI tem possibilitado, reinventando um fazer teatral diante da grande praga que ataca o mundo – a Covid-19 que surgiu para testar aos que vivem dentro deste universo sem rumo.
O teatro estaria sempre além de seu tempo? Desfazenda, ao utilizar recursos tecnológicos, só acrescentou ao deleite do público em escolher este espetáculo para continuar a aprazerar-se em continuar sendo público de teatro, mesmo confinados e com outros elementos que os tempos atuais propiciam.
O discurso direto apossado pelos atores e a atriz foi boa ‘sacada’ para a construção do enredo, visto que em vários momentos são eles os responsáveis pela definição de ações conflitivas, ampliando assim a possibilidade do deslanchar dramático no contexto da peça. Então, em seguida, à primeira fala da personagem Doze, os demais estabelecem diálogos, envolvidos pelas canções sensíveis que entremeiam e complementam o que se diz. Belas também as luzes que dinamizam os movimentos das personagens, a sonoridade fortemente determinante com a presença do slam no palco fazendo jus à outras competências da diretora, Roberta Estrela D’Alva. No mesmo entoar, sente-se a musicalidade rítmica das falas, dando mais potência em momentos determinantes do desenvolver do contexto narrativo que hipnotizam a nós, público. Isso é poético. É o que queremos ver e sentir certamente quando nos preparamos para o ritual teatral, seja nas cadeiras do teatro físico, seja numa deliciosa rede do aconchego de nossas casas. Este foi o meu caso.
Quatro pessoas pretas que quando crianças são capturadas pelo padre de um lugar para serem escravizadas. Um fato que persegue e determina profundamente as vidas das crianças, agora adultos, estes mostrados pelas personagens em cena. O exaustivo trabalho a que eram submetidos sem compensação, sem respeito à infância, iludidos pela falsa intenção da igreja que anunciava a proteção contra uma possível guerra que chegaria ao Brasil, coadunando fatos evocativos de violência. O texto, embora não siga uma linearidade, nos coloca à postos para acompanhar o calvário a que foram subjugadas tais crianças prisioneiras da fazenda. Uma fazenda que contrasta na apresentação com total ausência do multicolorido de um espaço de mata e bucolismo que lhe seria natural.
Tecido através do diário de Zero, o ajudante do padre, são ouvidos nas crianças-adultas os murmúrios de uma infância detonada numa continuação de escravidão realizada através de uma religião trazida pela colonização, na figura de um anônimo padre explorador, presente subjetivamente, como sempre nos foram perpetrados, uma consciência de submissão presentes em qualquer disciplina religiosa. Forte, a numeração das crianças pode remeter às nossas infâncias em escolas criadas pelas igrejas católicas no Brasil afora. Assim, percebemos que também fazíamos parte de um contingente de meninos e meninas pobres, indígenas, mestiças e pretas ensinadas ao silenciamento e à submissão.
De 12, 13, 23 e 40 e também o Zero, que não tem fala direta, e que pouco fica claro sua devoção às regras da fazenda – talvez o primeiro menino escravizado? A falada poética destes retoma, reforça nos textos finais às vidas de meninos e meninas submetidas a outras escravidões contemporâneas, tão cruéis quanto àquela criança que conviveu com um irmão sem (re)conhecê-lo. Não sinto falta do quase nenhum objeto cênico; a forma inteligente que usa outros recursos no interior das ações dá importância ao elemento que mais me emocionou, que são as contundentes falas que certamente devem estar munidos de embasamento dos grandes teóricos (re)vistos hoje na academia. Digo que Desfazenda nos mostra através da memória das quatro crianças-adultas uma leitura do porque o Brasil continua um lugar tão difícil para indígenas, negros, mulheres, pessoas trans e outras minorias, nem tanto minorias.
* Nazaré Cavalcante é professora, doutora em Literatura brasileira e pesquisadora com foco nas produções ficcionais da Amazônia.