O medo é uma moeda de duas caras
por Felipe Sales*
crítica da peça-filme Desfazenda: me enterrem fora desse lugar, do coletivo O Bonde, produzida no contexto da oficina olhar a cena – Laboratório de Crítica Teatral, conduzida por amilton de azevedo no mês de agosto de 2021 de forma virtual no Sesc São Caetano. sete textos das pessoas participantes da ação inauguram a série vozes.
Um dia, ao rolar meu Facebook, vejo um post curioso: durante uma aula de história da segunda guerra mundial, o professor apresenta aos alunos a suástica nazista. Uma aluna reconhece o desenho e diz que no sítio da família dela existem tijolos que carregam esse símbolo. E numa investigação mais profunda se descobre que lá uma poderosa família do Rio de Janeiro que mantinha negócios em São Paulo trazia crianças de orfanatos cariocas para trabalharem escravizados em sua propriedade rural. As crianças não tinham nomes, eram chamadas por números.
Assistia sem saber se os acontecimentos que li no Facebook aconteceram da forma descrita (vale citar que, depois de alguma pesquisa, confirmei que tudo aconteceu exatamente como descrito na rede social). Sobre a fazenda no interior de São Paulo, já estava ciente naquele momento de sua existência verdadeira. Esse é o ponto de partida para falarmos sobre a peça-filme Desfazenda: me enterrem fora desse lugar.
Sempre me incomodou a crítica que olha com óculos técnicos para a arte. Lembro-me da alfinetada feita por Martin Crimp a esses críticos insensíveis em sua obra Attempts on her life, em que uma personagem diz explicitamente o seguinte: por que eles não aprendem desenho? Por que eles não aprendem pintura? Estudantes deveriam aprender técnica, não ideias. Porque o que nós vemos aqui é a obra de uma garota que deveria ser aceita não numa escola de artes, mas num manicômio. Deste modo, peço-vos licença e humildade para compartilhar algo mais próximo da crônica que da crítica nesse sentido mais popularmente difundido. Eis aqui ela:
Assistir uma obra do conforto de sua casa é bastante cômodo. Eu mesmo preparei sanduíches e um copázio de coca-cola zero açúcar, e imagino que alguns tenham feito o mesmo. Arrumei os travesseiros da cama e lá fiquei confortavelmente nos últimos minutos antes de o vídeo começar.
Levei uma bronca. Mas uma merecida bronca. Não fique confortável. De imediato me olhei escarrapachado na cama e percebi o sadismo da situação. Quatro performers pretos em cena encenando a brutalidade da escravização e eu, branco, completamente confortável na minha cama e com meus lençóis assistindo. De imediato me sobe uma vergonha e me ajeito na cama. Os olhos antes relaxados se tornam as retinas atentas de um espectador que não quer estar passivo.
Pulei o diálogo entre uma criança e sua mãe que abre a peça-filme; retomo: a menor prendeu um bichinho na armadilha e agora está com medo de abri-la e ser atacada. O medo é uma moeda de duas faces, responde a mãe com calma e sabedoria. Se, por um lado, a criança tem medo do animal sair e atacá-la, por outro, o animal se sentirá seguro apenas dentro da armadilha, pois lá fora está aquele que o prendeu.
Os quatro performers cantam. A opção foi por deixar os quatro em frente aos pedestais dos microfones. Vale lembrar que a diretora, Roberta Estrela D’Alva é pesquisadora e autora do livro Teatro Hip-Hop: A performance poética do ator-MC. Esse fato me faz supor que podemos encaixar a proposta de encenação a esse gênero estudado por Estrela D’Alva e desenvolvido por ela junto a seu grupo, o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos.
Não sou adepto a spoilers, mas vale dizer que a história é contada do ponto de vista de quatro daquelas crianças levadas para o sítio. Ainda não sei dizer até que ponto os acontecimentos foram reais ou ficcionais. Fato é que existe um misto de crueldade e ludicidade nos diálogos. Crueldade em relatar com imagens muito claras o que acontecia na fazenda, mesmo sem nenhum acessório cênico, apenas com o trabalho dos atores em criar imagens. E a ludicidade justamente aí nessa falta de penduricalhos, que no final se provariam mesmo inúteis. Toda a história acontece ali por detrás dos pedestais.
Mas claro, é preciso um chacoalhão. E ele vem. Depois de mostrar com tanta ludicidade os acontecimentos, os performers colocam na mesa sem meias palavras as perguntas que entalam na garganta. Até quando vou precisar gritar ‘Parem de nos matar’?
O filme se encaminha para o final. Há um último diálogo entre a mãe e a criança, mas eu sinceramente já não consigo mais prestar atenção. Não durmo naquela noite pensando que essa fazenda ainda existe, nunca deixou de existir. E me dói o entendimento da minha impotência para destruí-la e da minha parcela de responsabilidade sobre sua perpetuação.
* Felipe Sales é ator, (tentativa de) diretor e co-fundador da Cia. Bípede de Teatro Rupestre. Graduado em Teatro pela Escola Superior de Artes Célia Helena, com curso de extensão em sistema Stanislávski na Moscow Art Theatre School na Russia. Seu últimos trabalhos incluem Mãe Coragem (BRICS FESTIVAL), Noites Brancas e DECOMPOSTO (Cia. Bípede de Teatro Rupestre).