Unificados pela clausura, unidos pelas diferenças
por Arthur Murtinho*
crítica da peça-filme Desfazenda: me enterrem fora desse lugar, do coletivo O Bonde, produzida no contexto da oficina olhar a cena – Laboratório de Crítica Teatral, conduzida por amilton de azevedo no mês de agosto de 2021 de forma virtual no Sesc São Caetano. sete textos das pessoas participantes da ação inauguram a série vozes.
Falando em vidas pretas, tudo começa no mar.
A frase me embala a memória enquanto recordo minha experiência com a peça Desfazenda – Me enterrem para fora desse lugar, do coletivo O Bonde. Escrevo esperando uma aula, já é noite e a água está na goteira da minha pia, que eu ouço intermitentemente. O ruído agudo me conduz, desde o princípio da peça, com a imagem espelhada de um oceano sem fim. Estou em frente a meu computador, e vejo pela segunda vez a peça, em seu último dia de temporada. Com fones de ouvido, a primeira coisa que me atento é ao tratamento sonoro dado tanto aos elementos musicais, aos efeitos e a própria palavra.
Todos os olhos em nós.
A narrativa introduz os quatro personagens, quatro crianças negras escravizadas em uma fazenda, cujas falas, conversas, angústias e desejos conduzem a experiência. 23, 12, 13 e 40 encontram seus corpos em Filipe Celestino, Jhonny Salaberg, Marina Esteves e Ailton Barros, respectivamente. O Bonde, que apresentava a história de Abu em Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus, nos convida para dentro da subjetividade dessas figuras, cada qual em seu personagem, até os últimos momentos em que, tal qual no outro trabalho do grupo, partilham a história de Zero. Toda a performance segue bem acompanhada da dramaturgia de Lucas Moura, do trabalho de direção de Roberta Estrela D’Alva e da direção e produção musical de Dani Nega. O trabalho conflui para uma experiência complexa, sintética nas materialidades apresentadas ao mesmo tempo que sofisticada na forma como as articula.
Dialogando entre si e com o espectador, em estrutura rítmica e musicalmente acompanhada, o coletivo desvela a pluralidade de experiências das personagens na fazenda. As ideias, o relato de traumas e as perspectivas das crianças tomam o centro da peça, explorando não apenas a violência da escravidão, como também seu fracasso: apesar da brutalidade, as identidades singulares, suas fragilidades, seu movimento, atravessam os tempos.
A água entrou pela porta, como entoa a voz ao final. O exercício de desumanização, conduzido incessantemente, encontra resistência no movimento.
E se…? Os sinos soam, intermitentemente.
A iluminação (de Matheus Brant) e o desenho sonoro abrem o caminho para as vozes, e se fazem presentes do início ao fim. Também é muito significativo o uso de recursos aparentemente impossíveis ao teatro. A edição do vídeo, com a sobreposição de imagens e cortes contrapostas ao espaço evidentemente teatral, compõe um não-lugar estético que é preenchido pelo texto. As imagens formadas pelo jogo entre edição, performance e iluminação fazem lembrar uma possível raiz etimológica, que une a fotografia (photografia) ao fantasma (phantasma), em seu prefixo. Photon, esse átimo de luz, um instante rápido e fugaz, e, no entanto, o que permanece é a escuridão.
O trabalho sonoro, por sua vez, passa pelo spoken word que costura o texto e lhe dá outras camadas, pela produção musical que acompanha a fala, até os próprios efeitos digitais e acústicos que expandem o sentido particular dos depoimentos. Quando Marina narra, sua voz é defasada até o eco, multiplicada em vídeo e áudio. O vento sopra ao microfone, cortante.
Não é possível deixar de falar de Zero, figura que permeia as lembranças e o cotidiano das crianças. De forma fantasmagórica, Zero está na palavra dos outros. Sua presença mescla os tempos, sendo tanto a figura de traumas e recordações quanto a voz que desenlaça a história. Seus atos são relatados, sempre sugerindo uma distância, como um intermédio entre as crianças e o Padre (captor e dirigente da fazenda). E, no entanto, o tratamento do discurso não se limita a tipificar uma figura, como se de Zero restasse nada, evidenciando sua própria subjetividade e a brutalidade que o faz assumir o legado padre. Zero se vê cruzado pela condição, tendo seu ápice em um dos últimos registros que ouvimos de seu diário.
“o que eu sou?”
Em Malungu, ngoma vem!, Robert Slenes elabora brevemente as possíveis etimologias dessa palavra que toma como título. Malungo, tanto o barco quanto o companheiro, poderia ser também aquele com quem se partilha o sofrimento, quem me acompanha na travessia da vida para a morte branca, e que me acompanha, por consequência, na viagem de volta para o mundo preto. Atravessados pela dor, de forma a reencontrar-se em um mesmo “mar ontológico”. 23, 12, 13, 40 e Zero, violentamente unificados pela clausura, compartilham – ainda que das maneiras mais diferentes possíveis – o retorno à vida, para fora desse lugar. Zero encerra seu diário-testamento.
Ao final da peça, um fluxo de questões é verbalizado por cada integrante. A culpa é de quem? A pergunta me acompanha. Desfazenda não sugere respostas, impelindo desde o início que o espectador não cruze os braços. Não se trata de assistir, mas de testemunhar. Testemunhar uma história marcada pelo risco, por um engenhado apagamento.Nenhuma resposta parece dar conta. A água como uma máquina do tempo, que a artista visual Aline Motta convoca, nos acompanha ao final – não mais invertida no céu, mas através de seu espelho. As crianças não mais aparecem, mas há ainda a voz que ouvimos ao começo. O barulho de água circula os ouvidos, nunca estático, balançando, ora empurrando, ora afagando. O contrário do medo não é a coragem, é o movimento.
* Arthur Murtinho é dramaturgo e músico, graduando em Produção Multimídia pela Faculdade Belas Artes e em Composição pela UNIRIO. Integrou o Núcleo de Dramaturgia da Escola Livre de Teatro entre 2018 e 2019, sob a orientação de Dione Carlos, e em 2019 ingressou no Núcleo de Dramaturgia SESI/British Council, orientado por Marici Salomão. É autor dos textos Ecolalia e Perjúrio – apresentados na Mostra de Dramaturgia ELT do SESC Ipiranga em 2018 e 2019, respectivamente – e Necrovisage – encenado por Aysha Nascimento no Portas Abertas do SESI/British Council em 2019 e publicada em 2021 pela SESI-SP Editora. Como músico, assina a direção musical da performance duracional ophelia is a-live, de Rúbia Vaz, apresentada nos meses de agosto e setembro de 2020 e na programação Terça Aberta da Cia. Fragmento de Dança. Integra o ensino técnico da Escola de Música Villa Lobos, na habilitação de Composição e Arranjo.