‘Desfazenda’ umedece meus olhos ressecados pela mágoa
por Amanda Carneiro*
crítica da peça-filme Desfazenda: me enterrem fora desse lugar, do coletivo O Bonde, produzida no contexto da oficina olhar a cena – Laboratório de Crítica Teatral, conduzida por amilton de azevedo no mês de agosto de 2021 de forma virtual no Sesc São Caetano. sete textos das pessoas participantes da ação inauguram a série vozes.
Mágoa enquanto marca, mancha, mácula. A abundância líquida da peça-filme reflete a escassez do lado de cá da ficção. Sendo a água elemento fundamental e constante, torna-se perceptível tanto quando presente como quando ausente e evoca as cicatrizes esquecidas em profundidades obscurecidas pelo indizível.
Desfazenda sobretudo diz.
Seu mar não é apenas rota de expansão ultramarina. O mar – que nunca deveria ter sido convertido em estrada criminosa, trajeto trágico para povos pretos – tem suas origens refeitas, destituindo o poderio das fábulas eurocêntricas, incluindo as fábulas que romantizam a escravização.
Assim, retorna o mar ao útero, ao colo, acalanto e balanço da mãe. Ele deixa de ser pista rasa e volta a ter profundidade. Alegoriza com mergulhos e emersões o eu inconsciente e consciente, o eu que teme o mundo ao passo que o quer ganhar, o eu que confunde a aquosidade de dentro e de fora, que prende e solta o ar, que afunda, nada, boia e flutua até construir sua própria forma.
Ao me levar sem sutilezas ao fundo amniótico da questão, Desfazenda me apavora. Traz o assombro lúcido de ver somada à intrínseca complexidade do crescer a variante que dificulta imensamente a equação:
como crescer em redução?
A peça se passa numa fazenda. A fazenda é como a redução jesuítica. Lá os cinco jovens pretos protagonistas foram transformados num amontoado indistinto de números.
Os jovens pretos perderam seus nomes antes de saber sequer que tinham nomes. Então como poderiam construir a própria forma estando presos à trindade fazenda-padre-capela? Pois sim, além da fazenda existe um padre e uma capela. Como poderiam construir a própria forma sem o conhecimento de sua condição de prisioneiros?
Longe da densidade fluida do mar, os jovens pretos se encontram na inconsistente rigidez de uma vida encarcerada, atarefada, insone, indesejada – na qualidade de obstrução dos caminhos que ligam o corpo ao desejo.
Padre-capela-fazenda se borram numa mesma ideia. Simbolizam a castração, a opressão radical que limita não só o ir e vir no mundo, mas o ir e vir enquanto ser: o fazer-se ser. Ao contrário da pregação usual, a estruturação da fazenda reitera:
desconheça-se.
Mas à medida em que a peça-filme avança, são evidenciadas as particularidades dos jovens pretos. Apesar do cárcere os descaracterizar e coletivizar arbitrariamente, a singularidade com a qual lida cada um com a redução é evidenciada. Por isso eles escapam ao coro. Por isso o que produzem é coralidade, ou seja, mantém a individualidade mesmo quando unem suas vozes.
Os poucos pretos de Desfazenda são representativos dos numerosos que somos afora a ficção. Os cinco, dentre eles uma única mulher, demonstram que sempre há uma potência em existir que precede qualquer opressão.
Os cinco jovens buscam – mesmo que incapazes de elucidar de todo o que buscam – a ruptura com a redução e a desidratação da fazenda, a partir da apresentação e reconhecimento de seus anseios, sonhos e quereres específicos. Buscam a forma ainda que polvilhados de medo. O medo, como perpassa seus corpos, revela o íntimo irreproduzível de cada um,
porque o medo não é igual para todo oprimido.
O medo do preto e gay não é necessariamente o medo da preta e mulher cis que não é o medo do preto e homem cis hétero que não é… Nunca é.
Um pensamento me atravessa. Talvez eu desejasse encontrar em Desfazenda um segundo momento de coralidade, onde, depois de desenhadas suas individualidades, os jovens unissem suas vozes não pelo aprisionamento em comum, mas pela liberdade…
afinal o que unifica sujeites livres?
Não sei em que ponto estamos da história fora da peça-filme, mas desconfio que a resposta dessa questão ainda não tenha sido elaborada pela dita civilização.
Por fim, quero falar de Zero. Dentre os cinco jovens pretos, Zero é o protagonista onipresente e in-visível de Desfazenda. Zero é conhecido ainda em sua infância livre, ainda sob o embalo e aconselhamento da mãe que lhe diz que “as águas são feitas de escolhas. São verdadeiras encruzilhadas”.
Acompanha-se a saga de Zero até sua morte. Sabe-se de Zero quase que exclusivamente pelos olhos dos demais. Porém, ele possui algo, um único objeto, um diário. Zero se apossa das palavras e de encruzilhada em encruzilhada monta seu caminho. Morto, suas palavras libertam seu corpo de um enterro na ressequida fazenda. Elas organizam a percepção dos jovens e minha visão de espectadora. A partir dessa organização
é possível que Zero retorne ao mar.
Da minha parte senti falta do nome. Senti falta que Zero batizasse a si com um nome com o qual amaria ser chamado. Gostaria que sua apropriação das palavras o levasse a construir um instante de dignificação, desfazendo-se de vez do número e da condição que o anulou em vida. Assim, a meu ver, Zero superaria simbolicamente a fazenda.
mas pode ser essa uma nova história.
* Amanda Carneiro é dramaturga e poeta paraense. Pesquisadora na área de dramaturgia teatral com licenciatura em teatro pela Universidade Federal do Pará e mestrado em teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Integra em 2020 o Núcleo de Dramaturgia do Sesi-SP onde compõe a peça Estados de Consciência, de leitura dramatizada realizada durante o evento Portas Abertas. Em 2021 participa do Festival Mulheres da Cena do Núcleo de Experimentos em Dramaturgia onde é realizada leitura dramatizada da sua mais recente produção, Atropelo.