teatro

da melancolia do desejo

crítica de “Por que não vivemos?”, da companhia brasileira de teatro.

[com a colaboração de Andréa Martinelli na edição]

Nas peças de Anton Tchekhov (1860–1904) o tempo emerge como uma das temáticas centrais. A espera — e a esperança — do porvir dialoga com seu momento histórico, onde tudo estava à beira de transformações então imponderáveis. Sua primeira dramaturgia é uma obra sem nome escrita quando o autor tinha dezoito anos, engavetada e encenada apenas após sua morte.

Montagens costumam nomeá-la a partir de um de seus personagens: Platonov. A encenação da companhia brasileira de teatro opta por um título extraído de uma frase-síntese presente na dramaturgia: por que não vivemos como poderíamos ter vivido?

Com direção de Márcio Abreu, que assina a adaptação da obra tchekhoviana junto de Giovana Soar e Nadja Naira (também assistentes de direção), Por que não vivemos? compreende o que há em comum entre aquela Rússia do final do século XIX e a nossa sociedade contemporânea. Mais do que buscar apenas no conteúdo os paralelos temáticos, é notável o trabalho de elaboração de linguagem presente na encenação — uma constante nos espetáculos da companhia brasileira.

Do lado de fora do teatro, o elenco conversa e brinda com o público. Ao entrar, alguns espectadores são convidados a sentar-se em uma arquibancada no palco — inclusive em alguns sofás ali presentes. O primeiro ato estabelece como convenção uma espécie de realismo performativo; a plateia é percebida, referenciada e tornada testemunha, quase cúmplice, daquelas personagens.

Considerando que a situação se passa no que seria um ambiente doméstico, a implosão da quarta parede e a própria assunção da teatralidade em certas composições tensionam, formalmente, as barreiras entre espaços públicos e privados. Daí já se pode refletir acerca da diferença das índoles dos sujeitos em tais situações.

Sustenta-se, durante este longo ato, uma série de situações até certo ponto verossímeis. Mesmo na superfície das relações e diálogos, afetos e desagrados se desvelam; a companhia brasileira escolhe construir momentos de repetição e deformação no loop de cenas que simultaneamente verticalizam e esvaziam o que se vê à primeira vista.

foto: Nana Moraes

Na adaptação de Abreu, Soar e Naira, diversos personagens do original foram suprimidos. As inter-relações e narrativas permanecem, todo modo, complexas, exigindo a atenção do público não apenas pela própria característica tchekhoviana do subtexto, mas para compreender certos detalhes do enredo.

Não por acaso escolhido como título de outras montagens da obra, Platonov é o catalisador de grande parte dos acontecimentos também em Por que não vivemos?. Não se trata de um protagonista no sentido estrito do termo, mas é como se fosse uma estrela em torno da qual o espetáculo orbita.

O trabalho seguro de Rodrigo dos Santos desenha o personagem em toda sua necessária complexidade. Abreu extrai qualidades distintas dos atores e atrizes — Camila Pitanga, Cris Larin, Edson Rocha, Josi Lopes, Kauê Persona, Rodrigo Ferrarini e Rodrigo Bolzan (que alterna com Vanderlei Bernardino), além de Santos — compondo um todo equilibrado em suas particularidades.

São personagens demasiado humanos em suas misérias, inaptidões e desejos. Habita neles, de maneiras diversas — e talvez principalmente em Platonov — uma melancolia nostálgica de um passado em que tudo poderiam ter sido e acabaram não sendo; por que não vivemos como poderíamos ter vivido? Eles e elas não estão paralisados, mas os diferentes desesperos os lançam uns contra os outros de forma vertiginosa. Na insaciabilidade de seus anseios, deixam por efetivamente buscar o que ainda é possível.

Os embates se dão entre os indivíduos, o que representam e distintas visões de mundo — e de futuro. Por que não vivemos? é uma sucessão de fracassos, de impossibilidades de vislumbrar o novo. O final do primeiro ato, uma grande festa que sugere um réveillon pela queima de fogos, inclui ainda mais o público, convidando-o para dançar junto numa celebração entre a esperança e o niilismo; entre a promessa do novo e a aceitação de que é isso que nos resta.

Após o intervalo, a mudança radical na proposta cênica elucida a necessidade da construção anterior. Abreu e a companhia brasileira de teatro compõem, na extensa linearidade dramática do ato inicial, a sustentação exigida pela fragmentação proposta no segundo ato. Esvazia-se toda a localização daquela situação e parece que contempla-se um Platonov assombrado; o lugar da ação torna-se o próprio sujeito, confrontado pelas consequências — em movimento — de suas atitudes.

foto: Nana Moraes

Se antes as dinâmicas inter-relacionais se sobrepunham em cenas com diversos personagens — além da presença destes também como observadores em alguns momentos — aqui os diálogos estão focados em duplas, tendo principalmente Platonov como centro.

As projeções, com direção de arte de Batman Zavareze e edição de João Oliveira, potencializam tais embates, redimensionando a presença deste Outro e reforçando a impotência de Platonov de tomar para si a responsabilidade sobre a própria transformação e também a do mundo que o circunda. Parece que a cada instante esvazia-se mais a possibilidade de superar a apatia gerada por como se vive naquele momento.

Para o terceiro ato, caem as telas, revela-se o palco nu. Resta apenas um sofá, onde boa parte dos personagens estará sentado ao final. Em mais uma escolha radical de Abreu, o momento em que o maior engajamento emocional do público aconteceria é subvertido pela narrativa crua; rubricas são anunciadas ao invés de cumpridas. A ação suspensa adensa o ar.

Ali, no momento derradeiro, a composição desenhada pela companhia brasileira de teatro não faz mais do público testemunha ou mesmo cúmplice de Por que não vivemos?; faz dele partícipe. A pergunta-título ecoa, sem nenhuma resposta possível. Platonov, sentado, está tão resignado quanto todas as outras pessoas ao seu redor. No final, seguimos assombrados entre desejos tão insaciáveis quanto melancólicos daquilo que, por (não) termos sido, pensamos que nunca poderemos mais ser.

Por que não vivemos?
foto: Nana Moraes