tudo o que é possível quando nada vai dar conta
primeiro texto produzido no contexto do ciclo de debates Crítica Isolada, idealizado por Tudo, Menos Uma Crítica e ruína acesa, com realização do Sesc Pinheiros. acompanhe as ações por meio do instagram @critica_isolada.
Sexta-feira, 26 de março de 2021. É o primeiro dia para a vacinação de pessoas entre 69 e 71 anos, faixa etária de minha mãe. Vamos cedo à UBS perto de casa; já há uma pequena fila. Passa um tempo. O senhor na nossa frente puxa assunto. Amenidades, primeiro. Depois, esboça uma defesa da ditadura. Sinto que o coração da minha mãe acelera como o meu.
Falo, calmamente, que é melhor não continuarmos o papo. Ele tenta insistir, mesmo com minha mãe dizendo o que sofreu no período. Ele fala mais alto, diz que somos muito radicais e não deixamos “eles” (um plural misterioso) falarem nada. Digo que é difícil para alguém que teve, à época, um fuzil apontado para a cabeça ouvir o que ele está dizendo.
Ele já está gritando, na fila da UBS, antes das nove da manhã. A funcionária do SUS chega dizendo que não se pode ter animosidades daquele tipo naquele momento. Peço desculpas. Ela diz “vamos focar na vida”. E tem razão. Pouco depois, minha mãe Sonia de Azevedo recebeu a primeira dose de sua vacina, produzida no Instituto Butantan.
É isso. Começo meu texto com este relato pois para mim ele sintetiza algumas das muitas crises que vivemos. Somos radicais. Qual a racionalidade possível no Brasil de 2021? O que se pode refletir em torno deste bombardeio incessante de obscenidades? Em meio à pandemia, ao governo, às tentativas de reescrituras da história, da defesa de valores fundamentalmente opostos à vida e à dignidade humana?
Na véspera destes acontecimentos, realizamos o primeiro encontro do ciclo de debates Crítica Isolada – para pensar o teatro em um ano de pandemia. O tema era a emergência de novas linguagens. Eu, amilton de azevedo, e Fernando Pivotto, do Tudo, Menos Uma Crítica, idealizadores da proposta realizada virtualmente no Sesc Pinheiros, mediamos a conversa com Maria Eugênia de Menezes e Diogo Spinelli.
Ao final do encontro, os dois foram convidados a devolver as provocações que fizemos – na forma de perguntas que este texto busca responder. Tomo a liberdade de reorganizar a pergunta de Diogo em torno do contundente questionamento de Maria Eugênia:
Qual é o teatro possível diante de 300 mil mortos?
Maria Eugênia de Menezes
O que, deste teatro, será levado adiante?
Diogo Spinelli
Em janeiro, no texto intitulado perspectivas 2021: por que teatro?, vislumbrei perguntas de algum modo semelhantes. Recorro a uma autocitação – que, escrita há dois meses, já revela-se produto de seu tempo (a segunda onda já chegou e o colapso na saúde do país já se alastra para muito além do caso manauara):
O que significa ir ao teatro enquanto Manaus está sem oxigênio nos hospitais? O que significa fazer teatro enquanto entramos de cabeça em uma segunda onda de contágio? O que pode o teatro em meio a tudo isso? (Gosto de lembrar sempre da desimportância do teatro. Ele não pode nada e, talvez por isso, pode tudo.)
O que significa reunir pessoas que pensam sobre teatro para falar de teatro nestes tempos de morte? Das tantas crises que nos envolvem, nos soterram e enterram tantos dos nossos? Por conta de e apesar de tudo isso, me vi emocionado durante o encontro. Em estar juntes para falar desta crítica isolada. Habitando hiatos de não-saber, compartilhando frustrações e fracassos, pensando sobre os muitos textos escritos e fundamentalmente sobre os não escritos.
Pensar teatro em um ano de pandemia é pensar nos possíveis emergentes mas também nos impossíveis. É um pensar que por mais amplo que se pretenda nunca dará conta de todas as questões, das de ordem urgente às do campo do simbólico. Há muitos porquês e infinitos como.
Não há um teatro que dê conta da realidade. E nenhum precisa. A bem da verdade, nenhum teatro precisa nada, e nesse sentido é fundamental pluralizar e efetivar recortes nas perguntas a serem respondidas. Falo, aqui, a partir da compreensão de que o teatro não existe no éter, e existe sempre em relação ao seu entorno. Falo de um fazer artístico que é produto e produtor de seu tempo. E o que a crítica tem feito em relação a isso? O que ela pode fazer?
Não se trata de exigir que surja uma estética da pandemia, seja na estrutura ou enquanto temática. Mas de pensar em torno destes possíveis que emergem absolutamente atentos aos seus contextos. Existem potências e atravessamentos nestas descobertas, circunscritos pelas necessidades de diversas ordens, lançados a novos meios, suportes, tecnologias, conexões, mediações.
Em março de 2020, os primeiros artistas e grupos lançaram-se ao meio digital. Poucos meses depois, surgiram iniciativas que mergulharam nas impossibilidades destes tempos. Os dois experimentos sensoriais em confinamento do grupo Magiluth buscaram linguagens multiplataformas e uma estrutura baseada, de algum modo, no convívio em um tempo suspenso. Em outra direção, os Satyros mergulharam na distopia pandêmica para a sua trilogia iniciada com A Arte de Encarar o Medo.
Pessoas e coletivos de norte a sul do país lançaram mão de suas pesquisas em salas de Zoom, lives de Instagram, chamadas de WhatsApp: todas as plataformas tornaram-se palcos destes novos que emergem. Aos poucos, transmissões passaram a ser feitas de teatros – e nesses momentos parecia que as diferenças e ausências saltavam aos olhos. Foram inúmeras as tentativas, com mais ou menos sucesso, mais ou menos potência, mais ou menos atravessamentos. Os teatros estavam fechados, mas muites escolheram manter-se em movimento. Por necessidades ou desejos vários.
Desde o início da pandemia foi assim. Desde quando imaginávamos que o governo tomaria as medidas necessárias para garantir o isolamento social de forma segura e viável para todas, todos e todes. Desde quando não imaginávamos que, um ano depois, estaríamos em situação ainda pior.
A vida nos escapa hoje em escalas assombrosas e inacreditáveis. A vacinação é um sopro de alento em ventos caóticos. Tempos de peste. Contágio. Isolamento. Contingências. Violências institucionais e descaso do Estado. O teatro possível diante de 300 mil mortos é um teatro que se percebe incapaz de estar à altura destas perdas. É, no fundo, um teatro impossível; mas que ainda assim se faz.
Algo do que está sendo feito sem dúvidas será mantido. Há o novo, mas há também muitos novos usos para tecnologias que já víamos na cena. O jogo entre o ao vivo e o gravado esteve presente em obras vistas nos palcos paulistanos – para ficar em dois exemplos, A Repetição I, de Milo Rau, trazia um curioso ilusionismo em certos momentos; O agora que demora, de Christiane Jatahy, mesclava sua obra audiovisual com a presença de atores na plateia. Durante o último ano, pudemos ver o impressionante Peça, de Marat Descartes (com direção de Janaina Leite), fazer uso deste e de tantos outros recursos de uma forma que deve ecoar em futuras produções do artista.
Na viagem cênico-cibernética CLÃ_DESTIN@, dos Clowns de Shakespeare, uma trajetória é iniciada ainda antes do percurso da sessão começar, a partir do contato via WhatsApp. Me lembro da viagem sonoro-teatral de A cidade dos rios invisíveis, do Estopô Balaio, onde a audiotour que acompanhava o trajeto da linha do trem se ampliava no envio de mensagens de texto. Caminhos reais, caminhos virtuais.
Também é interessante observar uma presença maciça de obras performativas e de caráter processual. Não que isso seja novidade dentro da cena teatral contemporânea, mas tais estruturas consolidaram-se quase que hegemônicas no último ano. Com novas convenções ainda a serem estabelecidas, muites arriscaram-se neste campo, de assumir e revelar a própria precariedade e o risco – que era, muitas vezes, também técnico. Obras como Experimento Espelho 2.0 mergulharam em procedimentos anti-ilusionistas que dialogam com tais questões. E neste caso havia ainda uma afinidade temática com o uso das mais de uma dúzia de câmeras, operadas de forma precisa pelos três intérpretes.
A construção dos teatros de cada tempo histórico se dá por rupturas e acúmulos. É importante perceber o que há de novo nessa emergência de linguagens, mas é igualmente importante perceber o que se mantém, se transforma, se ressignifica. Existem obras produzidas neste último ano que parecem nascer circunscritas ao seu contexto; tantas outras não. A depender das intenções de cada artista, é perfeitamente compreensível que certos trabalhos nasçam com a pretensão de se tornarem datados. Que falem de algo que um dia pertencerá ao passado.
O que permanecerá destes (im)possíveis em um futuro que sonhamos próximo dependerá do que permanecerá deste hoje no amanhã. A possibilidade da transmissão online cria pontes entre pólos de produção e fruidores espalhados Brasil afora e adentro. Será que veremos isso como instrumento de descentralização ou como instrumento para baratear custos de uma temporada teatral ou da produção de um festival? Também veremos os efeitos de uma utilização mais pulverizada de elementos do audiovisual, além da presença consideravelmente maior de profissionais da fotografia e da edição nas fichas técnicas. O que haverá de novo na normalidade a ser reinstaurada?
As distâncias tornam-se menores, as velocidades maiores, as conexões mais amplas e menos geográficas. Mas a ausência também se amplifica. As faltas. Da artesania analógica, do olho no olho, do respirar junto. Perdemos muito e infelizmente ainda parecemos ter um abismo diante de nós. Pois que as humanidades, de forma ampla e plural, sobrevivam a isso. Para que possamos voltar a ser um na multidão de uma plateia escura.