teatro

contemporâneo testamento

crítica de “LUX”, do Club Noir

foto de Roberto Lajolo

[nota: este texto foi escrito e publicado em 2017, antes dos envolvimentos recentes de Roberto Alvim na política. rechaçamos suas declarações enquanto secretário da cultura, além de seus posicionamentos em sua – hoje excluída – página pessoal no facebook]

Roberto Alvim é um artista que, por sua trajetória consolidada, traz em suas obras – seja na direção, seja na dramaturgia – uma assinatura muito característica; o que passa longe de sugerir que é um artista que se repete. Em “LUX”, assume, em frente à um jovem e grande elenco, o desafio de trazer à cena episódios bíblicos. O resultado é uma narrativa entrecortada, que ao mesmo tempo que lida com a tradição litúrgica e a representação de tais passagens, busca reinventar a própria relação do homem com o divino e as instituições religiosas.

Com uma escolha no mínimo curiosa de manter grande parte da dramaturgia em latim, Alvim nos remete à um momento histórico cujas missas eram realizadas apenas nessa linguagem, ainda que muitos ali presentes não a compreendessem; no caso do espetáculo teatral, a linguagem cênica acaba por aproximar a história sendo contada do público que a assiste – ainda que, para alguém com pouco ou nenhum repertório acerca do imaginário bíblico, tais momentos sejam de difícil apreensão. No entanto, não parece um risco impensado. A relação do humano com o sagrado por muitas vezes é mediada por arautos que não se fazem compreender de fato, e este distanciamento causado pela fala em latim deixa a recepção em suspenso; a religião – assim como a arte – tem seus mistérios.

Ao mesmo tempo em que nos remete a outros tempos históricos a partir do resgate da língua latina, a encenação nos lança de volta ao contemporâneo a partir, por exemplo, da inserção de canções que poderiam ser ditas óbvias, mas que, ressignificadas pela cena, agregam camadas de compreensão – o instrumental de “One of Us” tocando no fundo enquanto atrizes falam, em português, adaptação da letra da música é uma cena que, se observada isoladamente, poderia incorrer numa série de clichês; no contexto da obra, pela atmosfera construída na narrativa, torna-se de uma beleza poética imensurável.

A mera escolha de criar uma adaptação de um texto milenar já insere na obra um olhar de outra ordem; ao transportar uma narrativa tão antiga para um acontecimento cênico no presente há não apenas a construção de pensamento poético na criação do espetáculo, mas também o choque do espectador, mais ou menos conhecedor de tais histórias, frente àquela realidade – seja ela vista como sagrada, mitológica ou mera narrativa – que inevitavelmente ganha novos sentidos ao se ver no agora.

Em uma tensão constante entre a liturgia clássica religiosa e o mundo contemporâneo, “LUX” cria fissuras entre o que fizemos de Deus e o que foi feito de nós. Não se trata de uma negação da tradição, mas uma reescritura do presente.