em cada passo, um folguedo
crítica a partir de Cícera, do Grupo Contadores de Mentira (Suzano/Mairiporã/SP). este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
“Na mala a alagoana Cícera traz um punhado de farinha, quatro filhas e o sonho de uma vida melhor. Em São Paulo encontra dureza, concreto, fome e saudade. Cícera é a história de uma mulher, mas é o retrato da vida de centenas de mulheres retirantes que deixam suas raízes na busca de igualdade social”. A sinopse do espetáculo que leva o nome desta protagonista pode levar o público a pensar que já viu muitas vezes essa história ser contada. Narrativas de migração, a aridez do sertão, a necessidade de se deslocar pelo país, a própria invenção do Nordeste: obras não faltam na literatura, na música, no cinema e também no teatro.
O grupo Contadores de Mentira, fundado em Suzano (SP) em 1995 e atualmente sediado em Mairiporã (SP) depois de serem expulsos pelo poder público de sua cidade natal, parece ciente disso. Ao fazer de Cícera seu primeiro monólogo – depois de quase três décadas de pesquisa em torno do que chamam Teatro de Rito – trazem na encenação esse tanto que já se contou, flertando com esse imaginário para então, crítica e poeticamente, subverter expectativas e dar a ver essa multidão que se pode representar a partir da narrativa de uma vida.
E ainda que haja a revelação, ao final da peça, em torno da inspiração desta Cícera, o que se estabelece desde o início é precisamente uma vocação coletivizante da encenação dos Contadores de Mentira. Sob a direção de Cleiton Pereira, Daniele Santana está sozinha em cena, mas carrega consigo brincadeiras, tradições e movimentos que surgem do passado e se lançam a um porvir. Sua Cícera não é apenas uma representação social, um retrato da situação de mulheres retirantes. Ela é a possibilidade de fabular histórias particulares de forma pública, narrar a si e às suas a partir da perspectiva de uma personagem que é quase um cavalo, no sentido da incorporação, onde tempos, encantados, animais e forças pedem passagem para cheganças.
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A performatividade de Cícera é aquela própria do ritual. Santana, também dramaturgista do espetáculo, não é uma performer; a epicidade na construção da personagem-narradora afasta qualquer primeira impressão que colaria a intérprete à dramaturgia sendo contada. Ela é antes de tudo brincante, dotada de técnica e precisão, mesmo nos movimentos onde o rito parece levá-la a um quase transe. É raro perceber esta Cícera-Santana simplesmente andando pela cena: cada gesto é dança; em cada passo, um folguedo.
A história de Cícera, mesmo com toda a dor e as dificuldades, é no todo festejo popular. Nomeadas por Santana ao final das apresentações, estão presentes citações-invenções da tradição de Guerreiro (AL) e do Bumba meu Boi maranhense, além de referências às Icamiabas – lenda indígena amazonense em torno de uma nação de mulheres guerreiras (teriam sido elas que confrontaram Francisco de Orellana, colonizador espanhol que descia o rio que ganharia o nome de Amazonas por conta deste acontecimento) – e às Lloronas do Peru (uma fantasma do período pré-hispânico que, em regiões do país citado, anunciam a morte de pessoas que invadem as huacas, espaços sagrados incaicas).
Assim, os adereços utilizados por Santana são mais do que recursos estéticos: são evocações de manifestações populares, sacralizados em sua disposição espacial e ritualizados em seu uso. Nem tudo, talvez, se compreenda à primeira vista, mas na relação construída entre atriz, objeto e dramaturgia, Cícera é um nítido ato de reencantamento do mundo, dançando a cada passo com histórias de antes, de muitas; enfrentando as dificuldades lembrando do que já existe enquanto coletividades e igualdades possíveis.
Pereira e Santana assinam a concepção da cenografia e dos adereços; a ficha técnica traz os nomes de Regiane Santana e Vanessa Oliveira como artesãs convidadas para a realização. É importante, ainda mais ao se observar a primorosa construção desta encenação ritual em todos os seus pormenores. No cenário, uma lona no chão parece símbolo da aridez. O céu é todo estrelado em rendas e crochês, citação às tradições de tecelãs e crocheteiras populares. Do amarelo opaco ao azul brilhante, a iluminação de Tomate Saraiva cria uma trajetória que parece um dia se passando na direção da noite, mas é também o caminho de um olhar que se permite complexificar pela realidade de um Nordeste cuja história nunca é – e não pode ser vista como – única.
A direção de Pereira brinca com os tempos; no fluxo da encenação, ora se habita um tempo dilatado, ora tudo se move em uma grande condensação. Entre instantes mais realistas e andamentos de festas, há uma ousadia já perto do final, que encadeia tempos-pausas-suspensões de risos e dores. Dois silêncios tão próximos, o do sono e o da perda, divertem e desconfortam. Nem tudo é poesia.
Mas muito é. De um início silencioso e do vazio do espaço, contornado por objetos suspensos, aos poucos a obra faz com que se perceba tudo que habita cada elemento de Cícera. O que não está à vista desde o começo – para além do invisível que assim se manterá, pulsante – são pequenos segredos que se escondem não por efeitos de ilusão, mas pela alegria contida na brincadeira do revelar. Surpreender-se pela beleza que pode haver na simplicidade. Cícera traz gestos e cantos de trabalho, gritos e silêncios de dores, poesia, natureza, cidade. Santana dá vida aos objetos suspensos pelo espaço e dá vida ao invisível que desenha no ar. Preenche silêncios com seu corpo, com leveza, e também no peso do lamento. Fome, perda, vida, movimento, inteireza e pedaços: um jarro de farinha pode ser como que síntese de toda uma existência.
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ficha técnica
Cícera
Grupo Contadores de Mentira
Atuação: Daniele Santana
Direção e sonoplastia: Cleiton Pereira
Dramaturgismo: Daniele Santana
Relatos e textos em áudio: Cícera Maria da Conceição
Luz: Tomate Saraiva
Concepção de cenografia e adereços: Cleiton Pereira e Daniele Santana
Artesãs convidadas: Regiane Santana e Vanessa de Oliveira
Colaboração geral: Kaique Calisto, Michael Meyson, Samuel Vital
Cenotécnica: Kaique Calisto
Direção de produção: Palipalan Arte e Cultura
Produção executiva: Thatiana Moraes
Assessoria de comunicação: Ofício das Letras Comunicação
Mídias digitais: Contadores de Mentira e Ofício das Letras