teatro

Chiquita Bacana, aqui perto e lá longe

crítica de “Chiquita Bacana no reino das bananas”

foto de Cacá Bernardes

Não chega a surpreender a atualidade do texto de Reinaldo Maia, escrito há quase quarenta anos. Em um distante 1977, o autor que dá nome ao Galpão do Folias voltou-se para o público infantil em “Chiquita Bacana no reino das bananas”. Mas nem por isso afastou-se de seus ideais enquanto artista teatral.

Essencialmente dialético, põe em cena a tirania e discute-se a justiça. Chiquita é presa por comer uma banana – produto abundante no país, mas tipo exportação. Ao longo da fábula, outros animais acabam indo parar no banco dos réus – como o Coelho, que, apesar de responsável pela hora certa do reino, é acusado de não seguir a hora real. Acusações estapafúrdias se seguem, mas o final é aberto: Maia encerra um texto com uma canção que não conclui os acontecimentos. Na encenação de Dagoberto Feliz, a escolha cabe ao público – e mesmo assim, nada necessariamente se resolve. É, pois, difícil solucionar problemas e questões que muitas vezes nos parecem óbvias, mas se revelam mais complexas. Em “Chiquita”, esta complexidade existe, mas a tomada de posição quanto à ela é clara – o rei Leão, com seus asseclas Girafas e guardas Macacos, é um tirano das patas até a juba.

Se este breve texto de apresentação não dá a entender que se trata de um espetáculo infantil, é porque Maia, Feliz e o Folias D’arte sabem exatamente qual a função do teatro, seja qual for seu público alvo: a reflexão, o questionamento. E isso não se dá de uma forma didática, hierarquizada, onde a cena ensina e o público aprende. O grande campo em disputa é o do imaginário; o simbólico. E este é o maior mérito da encenação.

Ao propor, desde o início, a inclusão das crianças do público no jogo teatral, quando estes sorteiam que ator fará qual personagem, abrem-se diversas camadas de compreensão. É neste acordo, no pacto efetivado do espaço de brincadeira, que as crianças são conquistadas: não há cenário, tampouco iluminação. Todos os figurinos são semelhantes, numa sóbria sobreposição de pretos, de Fause Haten. Signos muito claros determinam quais são os animais “da vez” (estes, talvez, possam ser mais trabalhados – ou talvez seja apenas um adulto com menos imaginação dando pitaco) interpretados pelos jovens atores do Folias; muitos, recém-formados.

Assim, a criança não é tratada como muitas vezes vimos nos palcos de infantis por aí: aqui ela é convidada à opinar, refletir e, principalmente, imaginar o reino das bananas e seus habitantes da forma que melhor lhe convir. As músicas são convidativas e as muitas vozes, se não de exímios cantores, nos lembram que os atores, cantando em cena, estão, em primeira instância, contando histórias. E muitas histórias divertidas se sobrepõem naquele reino tão distante mas tão familiar.

A figura que centraliza essas histórias, quase uma narradora, é representada pelo(a) Apresentador(a). Mas ela não é mais narradora do que personagem: se inicialmente ela quer contar uma história, ao longo da encenação ela é absolutamente inserida nela, servindo como “advogada” no julgamento, pelo rei, dos réus. É um lembrete, muito oportuno, que não cabe a alguém de fora, alienada do contexto em que uma história acontece, ser a porta-voz de tal história; antes, esta narradora deve inteirar-se dos fatos, conhecer o reino, saber quem são as figuras envolvidas, ouvir, perguntar, buscar entender.

É um alento, nos tempos que correm, poder ir ao teatro e ver tantos temas da atualidade colocados à luz da cena sem nenhum tipo de arrogância, pedantismo, ou certezas absolutas. Apenas a clareza de que autoritarismos, nunca mais. Talvez, para algumas crianças seja apenas uma peça política e para alguns adultos, apenas um infantil. Que seja os dois, e que não paremos nunca de imaginar; nem de buscar reinos onde a banana seja para todos, e não privilégio de alguns.