cenas curtas, dia 5 — se ver, ser vista, seguir; identidades
olhar de amilton de azevedo sobre o quinto dia [28/9] do 20º Cenas Curtas, do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (MG).
Escrevo no domingo. Fico até amanhã em Belo Horizonte; o Cenas Curtas se encerra hoje com um último debate e depois, a festa. Foi uma semana festiva no sentido mais amplo da palavra. Encontros que alimentaram meu olhar sobre a(s) cena(s), sobre a crítica teatral; sobre potências de vida. Nesta semana, existi em teatro. Nas últimas duas noites, senti que o tempo das cenas passava de modo diferente — ou talvez fosse o meu, que finalmente deixara baixar a ansiedade.
Em três dias consecutivos, cheguei no quarto bem no momento em que a arrumação estava sendo feita por uma funcionária do hotel. Num deles, estava voltando do almoço; nos outros dois, havia descido para um cigarro breve. Os tempos se cruzam. No debate de ontem, Preto Amparo disse que pensa a dramaturgia como tempo. É bonito isso. O artista também comentou algo que talvez estivesse reverberando em mim e agora se organizou como pergunta: o que é, afinal, essa produção de uma cena de quinze minutos? O que se espera; o que se pretende e o que permanece em artista e público depois? Nas cenas de sábado, as sinopses previam uma noite que versaria sobre identidades da mulher — assim o foi, mas o teatro sempre surpreende; entre palavras descritivas, ação cênica e atravessamentos da recepção, há um lindo abismo.
A noite que encerra as apresentações do Cenas Curtas teve um recorte simultaneamente definido e plural. Cada uma a seu modo, as cenas abordaram as identidades e contextos do ser-existir mulher. A diversidade— seja por especificidades de linguagem, seja pelos distintos lugares de fala — desenhou uma noite rica em imagens, sensações e também discursos. Em um dos entreatos, a apresentação de Lara Vogue — primeira funcionária trans do Galpão Cine Horto — arrebatou o público, como se constituindo-se mais uma Cena Curta da noite.
Os diálogos entre as cenas apontam para o entendimento das tantas formas de se falar de identidade(s). Entre a potência da ancestralidade e as possíveis opressões escoradas na tradição, as quatro apresentações articularam climas diversos entre síntese, resgate, leveza, densidade e urgência.
Zaika dos Santos abriu a noite com Nagô. A relação entre ancestralidade, tecnologias e identidade sustenta a proposta cênica, que começa com uma projeção que situa o contexto que a permeia. É curiosa a escolha pela modulação vocal na narração do vídeo — algo monocórdio, quase remetendo a assistentes virtuais, deixando o explicativo e elaborado texto com poucas nuances. Na fala, uma matemática afrocêntrica é apresentada ao público.
A relação entre tranças Nagô e geometrias fractais esboça uma possibilidade de compreensão do afrofuturismo que parece partir do entendimento de que este se liga às ferramentas e tecnologias diretamente conectadas a saberes ancestrais. Quando Santos entra no palco e senta-se no meio do bonito pano dourado da cenografia, há uma potência imensa em sua própria imagem. Suas longas tranças carregam não apenas a simbologia, mas reverberam uma força que fricciona ancestralidade e identidade.
Na presença das trançadeiras, esboça-se uma homenagem à essas mulheres e seus saberes. A trajetória de Nagô é interessante, desde o vídeo até a coroação final. É uma cena que aponta muitos caminhos para o seu desenvolvimento — desde a relação entre as tranças e a matemática até as composições de imagens realizadas pela performer movimentando seus cabelos. É uma potência imagética que por si só já encanta e emociona o público.
A noite segue com as Fanchecléticas Coletiva e sua contundente afirmação de que Eu Não Sei Você, Mas Eu Sou Sapatão. O trabalho surpreende pelas variações constantes de linguagem nos curtos quinze minutos. Na narração inicial, gera-se uma expectativa. Em pouco tempo, completada a ação, as atrizes já estão compondo outro clima — sempre a partir de questões das identidades lésbicas.
O flerte, os comportamentos nas relações, o mito do anel de coquinho: Letícia Ângelo, Marina Martins e Nádia Fonseca caminham por este universo a partir de relatos pessoais divertidos em torno da mesa de bar. Depois, as tonalidades se tornam outras, seja no dispositivo proposto no jogo “nós”, numa busca de engajamento e identificação do público com as questões apontadas, seja na narração de Martins de uma agressão lesbofóbica sofrida.
Estas três lésbicas futuristas articulam dimensões distintas da cena, entre o íntimo e o expansivo; carismáticas, as intérpretes conduzem o público por esses trânsitos. Lançando mão de uma comunicação direta na maior parte de Não Sei Você, Mas Eu Sou Sapatão, talvez seja o momento final o mais surpreendente: Ângelo canta — com extrema beleza — enquanto Fonseca e Martins desenham a cena com o movimento fluido de seus corpos, entre imagens que parecem de alongamentos, preparação corporal, e outros de uma plasticidade mais abstrata.
A frase só a arte me interessa mas amo você permanece reverberando após a cena. Uma breve pesquisa aponta para um texto de V. Nabokov publicado na revista piauí; também para uma fanfiction curta e para algumas playlists românticas no Spotify. Difícil localizar a origem da referência para as Fanchecléticas, mas a afirmação dialoga com a atmosfera de sugestão imagética proposta pelo encerramento da cena.
A terceira cena da noite irá operar suas camadas cênicas fundamentalmente neste lugar de composições fragmentadas que sugerem mais do que afirmam. Suzana Araúja traz de São João del Rei (MG) suas Lentes de Contato. Ao construir a cena a partir de seu processo de subjetivação. Mulher, gorda, negra e periférica, Araúja questiona, em dado momento, se alguém está a vendo. Entre a invisibilidade e a hipervisibilidade, o olhar do outro em nossa sociedade torna-se empecilho para a própria performer se ver — e assim, ser.
Com concepção e direção da performer, Lentes de Contato traz escolhas estéticas interessantes. Tal qual essa subjetividade em processo, a cena fragmenta-se por meio da iluminação e as imagens desenvolvidas com habilidade por Araúja. A luz é dramaturgia importante para esta mulher que questiona se é vista e parece buscar se ver.
A performer oculta-se por meio de sua movimentação e da fluidez da iluminação — além da lida com um guarda-chuva, quase esconderijo por alguns momentos. É como se a cena reverberasse em sua composição um apontamento feito por Araúja: outras formas demandam outros enquadramentos. Na escolha por um desenho poético, a performer escolhe não revelar, mas instigar. As imagens presentes tanto na dramaturgia quanto na encenação abrem um campo para que o público navegue. São fragmentos à meia-luz; da sutileza que provoca à intensidade que quase cega.
Antes da última apresentação da noite — e do Cenas Curtas — o Rampa convidou Lara Vogue para o entreato. O que se desdobrou foi uma cena de extrema potência. Vogue convidou Kauan, jovem aluno do curso de teatro do Galpão Cine Horto — além de chamar Pitty, também trans e auxiliando nos serviços de limpeza do espaço para o palco ao término da apresentação — para lembrar o público do assassinato brutal da travesti Dandara dos Santos, ocorrido em 2017. A imagem inicial, de Kauan como Dandara, já emociona profundamente. O carrinho de mão no centro da cena; seu corpo com tantas manchas vermelhas. Vogue entra, de patins e roupas que remetem à figuras sagradas, ao som da bela música Indestrutível, de Pabllo Vittar.
Vogue sutilmente dubla a música como se fosse uma prece. Eu sei que tudo vai ficar bem. Depois desta imagem-síntese tão poderosa, a performer revela seu brilhante figurino enquanto roda de patins pelo palco e Kauan levanta e dança. Enquanto ele faz movimentos de voguing, Lara Vogue nos lembra o quanto pode significar um bate-cabelo. É celebração, é sobrevivência; é transcestralidade e identidade. E é fundamentalmente existência.
Após a fala contundente de Vogue após a apresentação, o clima se transforma profundamente para a cena que encerra o festival. Re-tratos, da Cia Les Trois Clés traz um quê de Bernarda Alba neste trabalho que articula a manipulação de bonecos como central. É possível também identificar elementos de teatro físico; certos momentos chegam a flertar com a dança-teatro.
Ainda que a narrativa seja de difícil apreensão como um todo, evidencia-se uma tragédia familiar e a Les Trois Clés produz constantemente imagens belas e densas por meio da execução precisa da manipulação. A imagem do falecido marido no peito da matriarca remete à opressão patriarcal e o contexto autoritário de onde se passa a história. Na família de mulheres, parece sugerir-se uma trajetória entre servir, seguir e se ver, ainda que por vezes os acontecimentos não sejam comunicados de maneira nítida.
A música é uma camada fundamental para a construção desta atmosfera soturna da cena. É na articulação entre a percussão ao vivo e a trilha gravada que Re-tratos sustenta sua dinâmica. Curioso notar que a cena que encerra o 20º Cenas Curtas talvez tenha sido a mais radicalmente diferente em termos de pesquisa de linguagens — a única a trabalhar com bonecos.
É importante compreender essa dimensão do festival: há um campo absolutamente livre de experimentação — contornado apenas pelos quinze minutos — e aí reside a permanente contemporaneidade do formato. Não se torna anacrônico, não se esgota, não é ultrapassado. Há muitas histórias a serem contadas e muitos modos de propor leituras sobre elas.
O Cenas Curtas chega ao seu final e já deixa saudades e marcas para o porvir. Espécie de celeiro de pesquisas e possibilidades, o Galpão Cine Horto segue de portas abertas, insistindo em desejar, como tem falado tanto Chico Pelúcio. Termino este [último?] texto sobre o festival agradecendo pelo convite.
E termino parafraseando mais uma vez o Pelúcio. Nesses horizontes, minha alma navegou intensamente por calmarias e tempestades. O teatro — a arte — como maneira de acordar ou acalmar a alma. A imagem é bonita e, mais do que bonita, inteiramente verdadeira. Os encantamentos dos encontros em suas tantas intensidades. E o tempo, passando a seu tempo.
[amilton de azevedo está em Belo Horizonte à convite do Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto]