teatro

cenas curtas, dia 2 — há muitos teatros no teatro

olhar de amilton de azevedo sobre o segundo dia [25/9] do 20º Cenas Curtas, do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (MG).

Caminhei pela cidade, do hotel até o Galpão Cine Horto. Me perdi, me encontrei; cheguei logo antes da chuva que agora insiste em cair. No caminho, uma senhora está delicadamente retocando um grafite no muro. Chego no restaurante na hora em que o self-service se encerra. Uma moça que trabalha lá me vê parado em frente ao feijão e oferece arroz. Entrego o prato para uma cozinheira que me serve — e oferece berinjela frita. Depois de comer, sigo o caminho; erro o caminho, vejo a cidade. É bonito abrir o olhar pra ela, inserir teatralidade na vida que se observa. No primeiro Debate do Dia Seguinte, a cidade foi um tópico. Uma paisagem com seus corpos, corpes e corpas. Oscilando entre hiper(in)visibilidades, como disse Guilherme Diniz.

Cabe iniciar este texto falando sobre o escrito do dia anterior. Não explicitei uma diferença que agora parece-me importante. No primeiro dia do Cenas Curtas, o que se apresenta são Cenas Espetáculo. Há uma pretensão de desenvolvimento daquele núcleo sintético posto no palco. É no segundo dia, quarta-feira, 25/9, que vemos as Cenas de Palco já dentro da mostra competitiva das cenas curtas. Aqui, muitas foram criadas já pensando no formato do festival.

Afora a duração, não há muitos outros contornos pré-delimitados pela organização — talvez necessidades técnicas, mas o que se percebe são as demandas mais diversas sendo atendidas. Assim, o público é lembrado que há muitos teatros no teatro. Nas quatro cenas apresentadas nesta noite, quatro linguagens muito diferentes; pesquisas, desejos, potências e ambições que se desdobram por distintos caminhos.

Se nas Cenas Espetáculos era mais possível estabelecer uma linha que conectava, de algum modo, todas as apresentações, aqui a trajetória muda de figura. Hipermídia, ações físicas em chave parodística, performatividade experimental e uma narrativa entre o épico e o realista. Novamente, as apresentações músico-teatrais do Rampa como entreatos — e o entusiasmo dxs vendedorxs de cerveja — ajuda o público a “recalibrar” a recepção e preparar-se para o que virá.

A noite começa com L O O P, de O Somos e Sandro Miccoli. No palco, Tulio Cassio e Elisa Righetto são espécie de cyberdançarinos; a coreografia (assinada pelos bailarinos e Rafo Barbosa) ecoa danças urbanas e salta aos olhos sua codificação precisa. No entanto, o que realmente impressiona na cena é o livecoding de Miccoli. A tela começa com pontos, que se tornam linhas e posteriormente ganham volume. A intervenção visual já reverbera a discussão proposta pela obra; e se redimensiona na percepção de que aquilo é escrito enquanto exibido.

“L O O P” / foto: Guto Muniz

Os corpos de Cassio e Righetto dançam iluminados pelos escritos visuais projetados no telão. Mais do que corpo-mídia, talvez se tornem corpos-nuvens, numa provocação que parece tensionar presença e ausência na era digital. Neste aspecto, inquieta pensar no anonimato dos espaços virtuais. É possível performar no anonimato? Ou tudo torna-se mediado, midiatizado e, assim, representação? Os rostos dos bailarinos estão mascarados por muito tempo. Quem existe — e onde existimos — no cloud computing?

O ciberespaço pode ser lido como a superação da presença? Quando ouvimos a voz de Siri responder sobre gênero, algumas reações positivas da plateia. É nos digitalizando que superaremos questões existenciais ou elas só se complexificarão? L O O P também busca tensionar questões de gênero — seja na exibição de uma Pietá construída por códigos ou nos vídeos antigos que mostram aparelhos de automação vinculados à exercícios femininos. Sintomático que nesta aparente busca pela presença na ausência a última imagem apresentada no palco é a de uma bandeja vazia. Certas coisas talvez nunca possam — ou devam — ser superadas.

O entreato. Um respiro! A eficiente técnica já monta o cenário da próxima cena; A Farsa do Bom Juiz, do Mamãe Tá na Plateia. A chave muda radicalmente. Nas ações dos homens e mulheres de toga, a farsa do título ganha tons exacerbados de paródia em resposta direta às gravações tocadas no início — a crítica é direta e a temática candente, o que faz o público rapidamente aderir ao humor proposto pelo grupo. Em torno de uma mesa, as ações do elenco revelam — e ridicularizam — as relações de poder no judiciário. Há um quê de Mesa Verde, ballet do coreógrafo alemão Kurt Jooss. A referência surge de modo sutil; talvez uma inspiração distante.

“A Farsa do Bom Juiz” / foto: Guto Muniz

A organização coreográfica aqui opta pelo exagero caótico e displicente, reação aos mandos e desmando de juízes em nosso país. O público, engajado, se diverte com a grande bagunça que vai se construindo ao longo da cena. Nossa República das Bananas está lá; a selvageria escancarada entre os ditos civilizados. Tudo caminha para a efetivação grotesca do “grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo”.

A atmosfera desta Farsa aos poucos ganha certa densidade quando se compõe a figura da Justiça. Ela, já metaforicamente tão violada, será agora efetivamente estuprada. O clima da cena muda completamente e o que começou como riso termina como desesperança. O filho desta Justiça — que desenha-se na expectativa de um herói redentor — é um natimorto, fruto da histórica violação daquela que o pariu.

Após mais um entreato, chega a primeira cena de fora de Belo Horizonte: |tubo|, de Maia de Paiva, vem de Recife, Pernambuco. O processo, ousado, de experimentalismo, com dramaturgismo de Lara Duarte, almeja refletir acerca da decolonialidade no próprio corpo. Enquanto o uruguaio Joaquín Torres García e sua Escuela del Sur afirma que “nuestro norte es el sur”, Paiva entende seu corpo como um tubo de 9 metros que liga a boca-norte ao cu-sul e busca inverter esta bússola.

“|tubo|” / foto: Guto Muniz

Inevitavelmente, a boca ainda precisa falar um pouco: a gravação em off serve de breve contextualização do que virá, mas é a entrada da performer que desestabiliza, com certo humor, o horizonte de expectativas do público. Nua sobre um cubo, Paiva comunica-se com outra parte de seu corpo. A sonoridade criada pelo movimento de seu pinto amplifica-se no microfone posto em cena por Duarte. “Eu falo, eu falo, eu falo, eu falo […]”. No duplo sentido da repetida afirmação, lugares de fala e o lugar do falo sobrepõem-se.

“|tubo|” / foto: Guto Muniz

Ao agradecer, a performer utiliza pronomes femininos. Corrige-se para o masculino e pede desculpas pelo ato-falho. O que se verifica, porém, é um ato anti-fálico enquanto possibilidade de desestruturar uma lógica binária e cisnormativa acerca de corpos e corpas. O pensamento passa a deslocar-se por todo o corpo na movimentação de Paiva (dirigida por Ana Paula Lopez), até chegar à uma composição, ainda em processo, de um corpo-cu.

Nas imagens construídas por corpo e palavra, o sul de nossos corpos ganha dimensões astronômicas e tesões geológicos. O que pode um corpo que se norteia pelo cu? |tubo| não fornece respostas, mas reflete acerca de formas outras de olhar para a própria corporeidade; principalmente no tocante à existências não-hegemônicas. A inversão — subversão? — de certas lógicas pode apontar novos caminhos; o cu se alumia.

Na cena que encerra a primeira noite da mostra competitiva de Cenas de Palco, o palco vira a mesa de bar. Eu Só, Com Verso, do 5só, opta por uma linguagem simples que potencializa uma comunicação direta e a construção rápida de empatia com as figuras que se sentam, cada uma sozinha, com seus versos. Compartilham-se experiências comuns à cotidianos periféricos; o bar torna-se o lugar de encontro, de igualdade possível. O dono do bar, Seu Arnaldo, evocado constantemente, é também o público que, atento, ouve as histórias plurais.

“Eu Só, Com Verso” / foto: Guto Muniz

O texto composto em verso e, no geral, bem dito pelos atores e atrizes, traz um refinamento que redimensiona a construção realista da cena. No formato de monólogos que aos poucos compõem um todo caleidoscópico, uma possibilidade de extensão ou redução da obra. Na última história, a imagem de que o Brasil é uma grande cachaçaria — e a relação com a arquitetura de nossa capital é um achado — se desenvolve organicamente. Além disso, faz pensar: não estamos nós, também, inebriados em mesas de bar, compartilhando angústias e afogando paralisias?

No Rolê da noite, na Gruta, o show-karaokê Se Sua Estrela Não Brilha, Não Tente Apagar a Minha, Daniela Belo (The Night Glamour) mandou a letra: “o futuro é solidão”. Há muitos teatros dentro e fora dos palcos; há teatralidade, desejo, beleza e dor na muita vida que nos cerca. Cá estamos: Belo estoura a Sidra e oferece. Brindemos, pois.

[amilton de azevedo está em Belo Horizonte à convite do Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto]