que se triunfe sobre o escombro
reflexão crítica de amilton de azevedo sobre “Contos Imorais — Parte 1: Casa Mãe”, de Phia Ménard, apresentada na 7ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MiTsp)
Um enorme retângulo de papelão cobre o palco. Ao fundo, vê-se o que parecem ser lanças erguidas. Sentada ao lado delas, uma mulher observa a entrada do público. Sua maquiagem, cabelo e figurino remete a um futuro distópico; algo entre Triss, de Blade Runner, Imperatriz Furiosa, de Mad Max: Estrada da Fúria ou até mesmo da figura de Lunga, cangaceiro queer de Bacurau.
Phia Ménard então se levanta e começa a observar a estrutura plana no chão. Toma seu tempo para isso, andando ao redor dela. Então, com uma atitude resoluta, pega uma das lanças e começa a retirar partes do papelão. Aos poucos, o retângulo passa a ser um reconhecível molde de algo a ser erguido.
Em Contos Imorais — Parte 1: Casa Mãe, a artista francesa constrói uma narrativa inteiramente a partir da materialidade cênica. A atmosfera sonora, de Ivan Roussel, traz ecos e leves ruídos; em certos momentos, parece-se ouvir o mar. Ménard enfrenta o ato de construir sem fazer concessão alguma.
Suas ações, ora intensas, ora até um pouco atrapalhadas, geram reações distintas no público. Não demora muito para se compreender o que se está erguendo — e certos movimentos são até mesmo antecipados. Porém, a performatividade radical de Casa Mãe — o risco iminente de fracassar na empreitada — mantém o espectador atento; até mesmo na torcida para que tudo dê certo.
A construção se dá de ponta-cabeça; antes de efetivar-se como o título da própria obra, a estrutura movimentada por Ménard parece ecoar o balanço de um barco. É a partir do poema elaborado pelo público ao longo do ato construtivo que as possibilidades de leitura se abrem — para muito além da sinopse do espetáculo e até mesmo da fala da artista durante o Pensamento em Processo, ação do eixo dos Olhares Críticos da 7ª MiTsp que ocorreu após a apresentação da sexta-feira, 06.
Pois ainda que Ménard verse sobre a dificuldade e o tempo que se leva para constituir uma civilização e a velocidade por meio da qual ela fracassa, aqui no sul do mundo e dentro de uma chave anticolonial pode-se ler de forma até inversa. A aparência da performer localiza-a em um futuro distópico, em uma terra arrasada onde tudo há por se fazer.
Mas também podem-se ler todos os tempos sobrepostos em suas ações; como que uma narrativa que perpassa eras e eras, desde a dita “fundação” da sociedade ocidental em seu berço grego até chegarmos a um porvir.
O Pathernon construído por Ménard, por alguns momentos, é também prisão da performer. Enquanto ele é destruído, esta Athena-queer-futurista primeiro apenas observa sua própria obra cair aos pedaços — e ao público, simultaneamente passivo e impactado pelo efeito estético proposto pelo ato final de Casa Mãe.
Uma sutil ação dela acelera a queda da estrutura. O berço da civilização, quem diria, é frágil. E talvez isso não seja de todo ruim: Ménard caminha sobre as ruínas. Há a compreensão de que se nossos antepassados foram capazes de conceber valores e estruturar uma sociedade, talvez nós também possamos fazê-lo novamente. É necessário triunfar nos escombros: acelerar o fim do mundo para que a humanidade possa ser refundada — talvez de um modo mais amplamente humano.