teatro

escurecer procedimentos, localizar utopias (sentir do além o vento que sopra nomes)

crítica de “Black Brecht — E se Brecht fosse negro?”, do Coletivo Legítima Defesa.

O caminho trilhado pelo Legítima Defesa vai se tornando cada vez mais escuro. E isso se trata de uma qualidade. Concebido a partir da ação poético-política “Em Legítima Defesa”, apresentada após dois espetáculos da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) de 2016, o coletivo assentou sua utopia quilombola do agora na MITsp do ano seguinte. Em “A Missão em Fragmentos: 12 cenas de descolonização em legítima defesa”, partem de Heiner Muller e seu texto “A Missão: Lembrança de uma Revolução” para compreender cenicamente uma linguagem autoral.

Agora, em “Black Brecht — E se Brecht fosse negro?”, eles lançam a provocação e respondem no palco. Com procedimentos vistos desde a primeira performance aprofundados, contam com ações realizadas no espaço público — e vivências e oficinas junto ao Sesc Pompeia, além de ações formativas no Centro Cultural São Paulo (CCSP)— e a afiada dramaturgia de Dione Carlos para propor uma forma própria de racializar as propostas do teatro épico de Bertolt Brecht.

A assertividade na lida com o público é dado recorrente desde “Em Legítima Defesa”. Em “A Missão em Fragmentos”, também não eram poucas as cenas de diálogos entre atores no meio da plateia. O corpo-a-corpo é elemento fundamental na concepção cênica de Eugênio Lima, que dirige as encenações, mesmo quando a ação se concentra no palco.

Se a performance originária do grupo era um grito em resposta, um manifesto ético e a afirmação das várias existências, o confronto com Heiner Muller ofereceu à Lima e seu coletivo a possibilidade de pesquisar de maneira vertical como formalizar esteticamente, por meio de procedimentos diversos, os discursos propostos. A narratividade se estabelece enquanto central nas obras do Legítima Defesa; mas sem perder de vista a performatividade daqueles sujeitos e seus corpos vivos.

no primeiro plano, Palomaris Mathias em “Black Brecht — E se Brecht fosse negro?” / foto: Cristina Maranhão

A obra se iniciava com corpos negros dançando no espaço. Vibrante, a movimentação constante pelo espaço estabelecia uma atmosfera entre a celebração e o foco para uma batalha. “Black Brecht” traz corpos que pulsam como a maré. Na imagem inicial, é possível notar uma associação quase direta com a travessia dos infindáveis navios negreiros dos últimos séculos. Posteriormente, projeções nos lembrarão das rotas escravocratas.

Enquanto os atores e atrizes seguram o impactante estandarte produzido por Renato Caetano, camadas se sobrepõem por meio da videointervenção de Bianca Turner. Ao fundo, a simbólica imagem de um cemitério aos pés de um baobá. No estandarte, um panorama por possibilidades de olhar para a negritude; entre sorrisos de figuras históricas e fotografias e vídeos do próprio coletivo em ações.

Nas mãos do elenco, rostos à procura de nomes. As fotografias de pessoas de origem africana escravizados e livres, feitas na segunda metade do século XIX pelo açoriano Christiano Jr. darão vida aos personagens do espetáculo. Neste primeiro momento, porém, emergem como homenagem à ancestralidade. No estandarte produzido por Caetano, a complexidade e densidade da iconografia presente no cenário (de Renato Bolelli), figurinos (de Claudia Schapira) e vídeos da encenação se verifica. Talvez mais facilmente reconhecíveis são os baobás e os machados de Xangô.

Para além do resgate histórico de elementos da ancestralidade negra, o que se verifica em “Black Brecht” é também a proposta de imaginários futuros. A ideia do Afrofuturismo está presente em diversas camadas da obra; assim como a possibilidade de construção de uma Afrotopia.

No centro do estandarte, uma ideia: RE-EXISTÊNCIA NEGRA. Letras estão invertidas neste interessante jogo de linguagem. Pode-se dizer que “Em Legítima Defesa” era um grito de sobrevivência; e “A Missão em Fragmentos”, a organização da resistência. Agora, com o prefixo “re-” ligado à existência, se trata de mais do que isso. No neologismo proposto, é possível compreender que o que se afirma é que este devir negro voltará a ser; uma existência retomada, reforçada.

“Black Brecht — E se Brecht fosse negro?” / foto: Cristina Maranhão

O material escolhido pelo Legítima Defesa como base para a encenação é o texto “O Julgamento de Luculus”, escrito no final dos anos 30 por Brecht como peça radiofônica e posteriormente adaptada como ópera (“A Condenação de Luculus”). A dramaturgia assinada por Dione Carlos — com intervenções do coletivo — mantém elementos estruturais mas opera uma transformação fundamental no texto brechtiano.

Não apenas acompanhando a provocação “e se Brecht fosse negro?” mas potencializando-a, a dramaturga subverte as figuras propostas — tanto os jurados quanto as testemunhas — não apenas na atualização e transposição realizada sobre o discurso original brechtiano, mas na compreensão da leitura racial ensejada por Lima sobre o teatro épico de Brecht. Conteúdo, forma e teoria se alinham na pesquisa e na encenação resultante.

É uma mudança no locus social do sujeito poético — não apenas a alteração ou adaptação de uma obra a fim de estabelecer pontes com o momento presente; mas a profunda análise crítica contextual acerca de propostas éticas e estéticas. Para que os procedimentos sejam efetivos, não basta meramente alterar o protagonista; mas sim transformar narradores e narrativas como um todo — sejam elas textuais ou imagéticas.

Formalmente, “Black Brecht” estrutura-se em três partes de dimensões bem variadas. A primeira, “O Tempo dos Vivos”, é um prólogo do Legítima Defesa. Palomaris Mathias se apresenta como narradora e apresenta, em um sintético e direto discurso, os objetivos da encenação. Na segunda, “O Tempo dos Mortos”, a mais longa, se localiza o julgamento de Luculus — aqui, de sobrenome Brasilis.


Jhonas Araújo em “Black Brecht — E se Brecht fosse negro?” / foto: Cristina Maranhão

A narradora torna-se então o Arauto e anuncia a morte do grande “general, missionário, civilizador, latifundiário, homem de negócios, investidor, pensador, mercador de escravos que conquistou Pindorama”. No texto original, Brecht apresenta um Luculus romano — “o general que conquistou o Oriente, que derrubou sete reis, que de riquezas cobriu nossa cidade de Roma!”; seu julgamento no reino das sombras traz a voz de vítimas da expansão imperialista romana e dos terrores da guerra.

Na construção de Carlos junto ao Legítima Defesa, como o prólogo já anuncia e aos poucos se torna evidente, está sendo julgado o colonizador — em suas múltiplas facetas; ainda que o Brasil seja o centro da ação e da maioria das referências, as heranças malditas dos povos escravizados e da partilha colonialista da África também está presente.

Neste sentido, a obra não faz concessões no que se refere a trazer à cena dados, informações e reflexões. A presença de um filme no meio da encenação realça, duplamente, a compreensão da necessidade de interlocução entre linguagens e um caráter didático do espetáculo — no (melhor) sentido brechtiano. Assinado por Ana Júlia Trava, “Entenda o processo colonial em 5 minutos” tem letra de Azagaia recitada na poderosa voz de Roberta Estrela D’Alva.

Ainda que densa, a encenação de “Black Brecht” se mantém dinâmica pela movimentação e composição cênica. A direção de gestos de Luaa Gabanini — que também assina preparação corporal e coreografias com Iramaia Gongora — resulta em movimentações bem definidas. No procedimento de vestir as máscaras de cada personagem, a assunção do que se aproxima dos chamados gestus brechtiano é bem delineada e não confunde — ainda que sejam muitos aqueles que participam do julgamento de Luculus.

Além disso, a constante referenciação direta a textos de pensadores negros encontra uma maior organicidade aqui do que havia em “A Missão em Fragmentos”; não compreendendo as intervenções teórico-filosóficas como momentos estanque, mas sim dentro do fluxo das narrativas, o espetáculo ganha em ritmo.

Neste sentido, a presença de Lima nas pick-ups garante a pulsação constante deste Brecht negro. Assim como na obra anterior do Legítima Defesa, o diretor da obra divide a direção musical com o sul-africano Neo Muyanga — este, na estreia, também tocou em cena ao lado de Luan Charles. O processo de sampleamento, presente não apenas na música mas nas sobreposições propostas pelas diversas camadas da encenação, torna complexo analisar referências de maneira isolada — e talvez este seja precisamente o ponto.

Ao mesmo tempo que há este diálogo denso entre ação cênica, vídeo e dramaturgia sonora, a organização do texto de Carlos é um seguro fio condutor em meio à tantos elementos potentes — o que não garante que tudo será apreendido pelo espectador; ainda que com muito menos personagens do que o original brechtiano, segue sendo uma trama um tanto complicada.

Quando Jhonas Araújo veste a máscara do colonizador, a figura de Luculus parece banida do espaço cênico; exilada na plateia. Como anuncia a rubrica do início da segunda parte, o que se verá é o “julgamento do homem colonial pelos condenados da Terra”. E como se no palco, portanto, houvesse espaço apenas para tais condenados; além dos subalternos que almejavam estar no lugar de seu opressor — ou não tinham consciência da própria condição.

A voz do juiz dos mortos (Walter Balthazar) só se pronuncia em kimbundu, uma das línguas bantu mais faladas em Angola. Seu tradutor, em cena, é Marcial Macome — uma interessante escolha de Lima: Macome é moçambicano. Numa leitura possível, a tradução do julgamento é realizada por um jovem africano, mas, ao mesmo tempo, sua pronúncia do português pode nos remeter tanto ao colonizador como ao colonizado — no conteúdo, porém, o discurso está irremediavelmente ao lado dos oprimidos.

Na construção dos jurados e testemunhas, a escolha pelas fotografias de Christiano Jr. como base é também uma reestruturação da lógica brechtiana. Antes de compreender as personagens como representações, o procedimento de “Black Brecht” parece ser o de buscar, primeiro, humanizá-las. Em uma formulação relativamente simples, os “escravos” do texto de Brecht passam a representar mais do que essa função — são pessoas escravizadas.

Mesmo com o elenco extremamente equilibrado, Luz Ribeiro destaca-se por sua presença cênica e potência oral. Também Fernando Lufer, como a voz cavernosa; narrador do reino das sombras, a concepção dessa figura homenageia Sabotage — pois, sim, “respeito é pra quem tem” (as imagens do videoclipe homônimo, com direção de Tatiana Lohmann, são utilizadas no espetáculo). Completam o elenco os atores Gilberto Costa e Tatiana Rodrigues Ribeiro.

No final de “A Missão em Fragmentos”, a dedicatória da obra para todas e todos que acreditam em um novo mundo possível; a compreensão da condição de subalternidade a ser superada pela concepção de um quilombo-utopia. Em “Black Brecht”, o público é presenteado pela terceira parte: “O Tempo dos Não-Nascidos”.

Como Lima afirma em texto no generoso programa, “é preciso dar topos para a Utopia, Afrotopia: uma realidade que embora seja propriamente africana, é oferecida aos olhos do mundo como fonte de reflexão”.

Não mais meramente o — necessário — resgate do que foi e é a ancestralidade africana para o mundo contemporâneo; mas a assunção da formação africana e indígena das américas — a amefricanidade — como perspectiva de futuro.

Gira tempo, tempo gira. O amanhã como devir que abarca os que vieram antes. A insistência em seguir nascendo, permanecer vivo. Descobrir no vento que sopra os tantos nomes que se perderam de rostos.

“Black Brecht — E se Brecht fosse negro?” / foto: Cristina Maranhão