teatro

das gaiolas antigas e o risco do vôo

crítica de “Asas de Seda”, do Coletivo Orna.

Eduardo Galeano, em seu Livro dos abraços, conta de um homem do povoado de Neguá, na Colômbia, que subiu aos céus e de lá viu o que é a vida humana: “O mundo é isso — revelou — um montão de gente, um mar de fogueirinhas”.

Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo. (O Mundo in O livro dos abraços; Eduardo Galeano)

Em Asas de Seda, do Coletivo Orna, a dramaturgia de Luan Carvalho propõe que mulheres sejam passarinhos. Seus vôos se costuram em tessituras leves como a seda; duras como o brim. Bebendo nas fontes do teatro popular, a encenação de Luiz Soares estrutura-se em uma contação de histórias.

Para situar esta busca por narrativas femininas em tempos antigos, com certa insinuação mítica, Carvalho insere duas personagens centrais: uma noiva e a costureira que fez seu vestido, na família há muitas gerações. É na noite em que reforma a peça de roupa que esta anciã conta de mulheres-passarinhos e seus vôos tão atribulados.

Nesta relação central, Janaína Maranhão constrói corporal e vocalmente uma velha misteriosa, divertida e também ríspida. A jovem noiva da atriz Lua Pires aparenta uma tensão que fica entre proposta de personagem e certa mecanicidade da intérprete. Antes do público ser apresentado à elas, Juliana Pina e Letícia Tancredo surgem como narradoras — também viverão personagens das histórias — que introduzem o espetáculo e o inserem dentro do universo popular.

As músicas tornam-se centrais para a encenação. Compostas por Carvalho, Soares e Mariana Nunes (que também faz a sonoplastia e música ao vivo, acompanhada de Danilo Pique), estabelecem desde o início uma atmosfera leve e desenham os climas de cada narrativa apresentada. O elenco, completado por André Bizorão e pelo próprio Carvalho, toca instrumentos e canta como quem conta histórias, narradores e comentadores nestas canções que são também dramaturgia.

O figurino de Rodrigo Alcântara — que também assina a cenografia — parte da ideia de que aquela trupe veste o que é necessário para cada momento. Assim, caracterizações menores e maiores definem personagens e narradores. O Coletivo Orna estabelece este pacto com sua plateia ao jogar com a troca de adereços na canção inicial e ao manter suas coxias abertas, com as trocas à vista do público.

Na primeira narrativa, Pina constrói intensamente a figura de Maria do Barro, uma mulher simples do sertão que perde a mãe logo no parto e é criada pelo pai, violento e alcoólatra. É ele quem decide que ela irá casar e o ciclo machista das relações se mantém. Carvalho, em interpretação séria e densa, é este marido cruelmente assertivo e de poucas palavras. Na chegada de seu irmão, interpretado por Bizorão, diversos horizontes se desenham na mente do espectador. O que parece ser um homem sensível torna-se também violento. A iluminação de Junior Docini intensifica a cena central desta história — em uma escolha inteligente da encenação, a violência torna-se uma partitura onde apenas as atrizes mulheres estão na cena.

Jacira, a filha da lua, é a protagonista da narrativa seguinte. Interpretada por Maranhão, diverte o público em sua interação. Sempre a procura do amor, ouve de uma cigana que lera a sua mão uma profecia que não tarda a ser concretizada. Na encenação de Soares, a intérprete e Bizorão, seu par romântico, constróem suas figuras como tipos, focando no efeito cômico do exagero. Até a ação violenta de Jacira acaba gerando riso na plateia; desenha-se, de um modo torto, um final feliz.

Encerram os causos contados pela misteriosa costureira a relação da lavadeira Sebastiana, em forte interpretação de Tancredo, com o rio. A força das águas, que traz e leva vida, movimenta Sebastiana do amor à loucura. A lavadeira busca impedir que certos desígnios do destino se concretizem, mas tudo torna-se em vão.

Por fim, além da revelação sobre a costureira misteriosa, a própria noiva passa a refletir sobre as próprias escolhas. Em uma escolha curiosa de ação, o faz retirando seu salto e colocando o pé descalço no chão. Entre a homenagem e a romantização, há um certo ruído neste momento que acaba reverberando no todo de Asas de Seda.

Possivelmente relacionado ao fato de ser escrita e dirigida por homens, a obra acaba estruturando-se de forma um pouco distante do que parece ser a proposta inicial. Ainda que se busque falar de mulheres fortes, as três narrativas soam como uma aproximação de um olhar estrangeiro à estas protagonistas. Nas histórias, ecoam matrizes antigas do feminino.

Maria do Bairro acaba sendo retratada apenas como uma vítima das ações e expectativas de uma estrutura social que cria opressões de gênero nas relações amorosas — como infelizmente tantas notícias do Brasil de hoje, onde a narrativa do relacionamento se coloca como espécie de justificativa para assassinatos e pouco se sabe da vida destas mulheres.

Da trajetória de Jacira pode inferir-se uma crítica aos padrões de beleza, mas isso não se efetiva na ação cênica; acaba evidenciando-se a necessidade de ser desejada por um homem. Sebastiana desloca-se para um momento mais lírico e até mítico na relação com as águas, mas lá está a expectativa da maternidade e novamente a busca pelo parceiro romântico.

Evidentemente, não há um problema em escolher contar histórias deste tipo — e a forma popular comunica e aproxima o público destas narrativas e personagens. No entanto, o final pode soar deslocado na afirmação de independência e liberdade da noiva, cujo vestido agora se compõe destas tantas passarinhas. Parafraseando o diálogo entre os forasteiros e a vendedora do mercadinho de Bacurau, talvez seja fundamental compreender que não se tratam de passarinhos. Mas de pássaros. Cujas gaiolas estão cada vez mais implodidas e escancaradas; o que não diminui o risco de ser alvejada em pleno vôo.

“Asas de Seda” / foto: divulgação