teatro

dos não-ditos à meia-luz aos destroços de nós todos (ou apenas um domingo)

crítica de “Apenas o Fim do Mundo”, do grupo Magiluth, com direção de Lubi e Giovana Soar.

Estar em família nos tempos que correm, polarizados e agressivos, possui sentidos diametralmente opostos para algumas pessoas. O campo de profunda intimidade, de laços afetivos que transcendem qualquer escolha de vida é sempre confrontado por outro, de silêncios e dos atritos superficiais que tanto revelam sobre pulsões escondidas ou camufladas.

Almoços de domingo em família tem a singular potência de serem, simultaneamente, festivos e constrangedores. Leves e tremendamente opressivos. A instituição familiar em si passa a ser objeto de questionamento e crítica na contemporaneidade — e por que não deveria ser? — assim como a compreensão de novas formas e arranjos possíveis também está em instável disputa.

Sem se furtar por inteiro destas questões, mas penetrando em outras camadas do que significam e revelam as relações familiares, o grupo Magiluth busca em Jean-Luc Lagarce uma possibilidade de falar do humano e de seus afetos. Quando o autor francês escreveu “Apenas o Fim do Mundo”, em 1990, já sabia que tinha Aids. Seu protagonista, Luis, anuncia para o público durante o prólogo que morrerá no ano seguinte, aos 34 anos. Lagarce faleceu aos 38, cinco anos depois de escrever o espetáculo.

Em uma época onde ser diagnosticado com HIV, pelo pequeno tempo de sobrevida, era quase uma sentença de morte, o dramaturgo insere suas angústias na figura do jovem escritor que retorna a seu lar a fim de contar para sua família que irá morrer.

Trata-se de uma dramaturgia extremamente densa, que articula duas construções cênicas. Quando toda a família está presente, parecem estar todos correndo pela superfície, evitando a profundidade — e ainda assim, esta vai se revelando. Nos momentos em que estão em cena apenas Luis e um dos parentes, ele silencia enquanto seu irmão, irmã e mãe expõem a si próprios e a ele, verborragicamente.

Sob a direção de Luiz Fernando Marques, o Lubi, e Giovana Soar — que também assina a tradução da obra; a mesma utilizada pela companhia brasileira de teatro em montagem de 2006 — o grupo Magiluth cria enquanto encenação um site-specific que desestabiliza a recepção do público enquanto materializa a trajetória do espetáculo.

A itinerância proposta insere os espectadores nos ambientes daquela casa de família. Assim como para as personagens, o aconchego não dura muito tempo; é um certo incômodo que dá o tom. Os deslocamentos pelo espaço transmitem ao público a sensação proposta pela rubrica de Lagarce que indica que a ação ocorre durante um domingo ou por um ano inteiro.

Pois ali, ao estarmos apertados em um corredor ou observando o diálogo em um pequeno canto, o que se percebe são conversas que transcendem o tempo presente. E nos tantos confrontos, o não-dito; os olhares, sorrisos e reações que revelam e transformam as palavras.

Pedro Wagner, do Magiluth
Pedro Wagner, do Magiluth, ator de “Apenas o Fim do Mundo” / foto: Estúdio Orra

Nesse sentido, cabe reafirmar o talento dos intérpretes do Magiluth. Em uma encenação complexa, com diversos elementos a serem considerados, a interpretação segue sendo um dos pilares do trabalho. Pedro Wagner, com poucas palavras e muita escuta, constrói Luis como uma fortaleza sem perder de vista a fragilidade da figura. Talvez o principal antagonista da obra, o irmão de Luis, Antonio, de Mário Sérgio Cabral, é ao mesmo tempo consistente e surpreendente.

E mantendo a potência lúdica da representação estão os três homens que interpretam as mulheres da narrativa. A escolha de não buscar trejeitos, mas sim inserir-se radicalmente na proposta compreendendo o cerne das personagens é mais uma vez acertada. Erivaldo Oliveira carrega a doçura e certo excesso de zelo da confusa — e sem nome — mãe; seu diálogo com Wagner frente ao espelho é dos momentos mais delicados da obra. Como a irmã Suzane, Bruno Parmera transita entre insegurança, admiração e raiva. E Giordano Castro, como Catarina, esposa de Antonio, é incisivo nos comentários silenciosos e nas poucas intervenções.

Assim, desde o início, a plateia é capturada pela densa situação que se desenha. Cientes do objetivo de Luis, somos cúmplices de sua dor; mas aos poucos, são outras as dores as que se revelam. A sala é inicialmente confortável. Na contrarregragem dos atores — e de Lucas Torres, que completa o grupo; além da assistência de direção do trabalho, também participa de algumas cenas — dois dados se destacam.

O primeiro é uma nítida intenção de desestabilizar a recepção do público. A movimentação e as constantes interferências para organizar o espaço parecem pensadas para redimensionar a obra; apesar da densidade do texto, Lubi e Soar provocam outros sentidos na intrincada encenação. O segundo é uma constante adequação dos elementos como que para receber melhor o retorno do filho ausente.

Sofá, tapete, mesa de jantar: há sempre uma extensão dos móveis não por uma necessidade física; mas como se agora a família precisasse deste espaço. Os parentes parecem perceber o retorno de Luis como o do filho pródigo. Seu silêncio e a ausência de explicações fazem esta ser uma possibilidade; no entanto, não há herança perdida — nem arrependimento. Sutilmente, o porquê de sua partida e que seu retorno não se trata de um mistério tão grande vai sendo sugerido.

O que há é a angústia de ver-se em frente à própria mortalidade. E a busca, talvez inconsciente, pelo conforto primal do seio familiar. Os afetos, porém, não são assim tão simples. Na impossibilidade de se abrir, aos poucos os íntimos diálogos à meia-luz — onde, por mais que houvessem cobranças e perguntas, também havia carinho — ganham tons mais espetaculares; tanto no conteúdo quanto na forma.

Nas possibilidades oferecidas pelo site-specific, as proximidades propostas e o espaço em si criam distintas relações construídas com o público. A potência poética da paisagem do Sesc Avenida Paulista também é bem utilizada; assim como alguns elementos técnicos à disposição. As transformações são constantes e, ao aproximar-se do final, “Apenas o Fim do Mundo” materializa a exposição e o mundo interior daquela família; concretizando no espaço os destroços não apenas deles mesmos; mas de toda a construção da alteridade entre eles.

A relação que se desenvolve entre aqueles que ficam e o que se foi tensiona quem somos e o que criamos do outro, daqueles próximos a nós. Quem se é, quem se vê ser; Como se constrói a si e como se constrói ao outro. Em seu retorno ao lar para preparar a derradeira partida, Luis fala mais ao público do que aos seus. O dado de deslocamento e de solidão se contrasta pela franca exposição de Antonio, Suzane e sua mãe. É apenas o fim de um mundo — ainda que em ensejos egoístas talvez todo moribundo desejasse que todos fossem consigo.

Independente de quem está ao nosso lado, o ser humano morre só. E a consciência de nossa fragilidade tem tons de domingo; daqueles que o tempo parece não passar, por bem ou por mal. É apenas o fim do mundo, e a cidade pulsa para fora dos vidros. Dentro de um ano, são muitos os domingos em nós.