são muitos os tempos em oito segundos
crítica de “Agropeça”, do Teatro da Vertigem. este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
Uma arena de rodeio é o chão de “Agropeça”, do Teatro da Vertigem. Na encenação de Antonio Araújo, com co-direção de Eliana Monteiro, a dramaturgia de Marcelino Freire insere as personagens do Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, na contemporaneidade do agro. Que é pop. Nesse confronto, as figuras de um imaginário arraigado na formação de gerações de leitores, constitutivo de parte de nossa cultura nacional, dialogam com as dimensões espetaculares do imenso latifúndio que se tornou o ambiente cultural do sertanejo.
Em 1929, Cornélio Pires é o responsável pela gravação de “Jorginho do Sertão“, momento considerado fundador da música sertaneja, então vista como uma adaptação para a indústria fonográfica da chamada música caipira. A narrativa do homem que “enjeitô treis casamento” inaugura a distribuição de um gênero musical que, ao longo do último século, se transformou tanto quanto a realidade que representa em suas canções. Não faltam nomes e marcos ao longo desta história. Há todo um universo que separa os temas (e ritmos) do sertanejo, do “de raiz” ao “agronejo”. Se antes, próximo da “cruzinha do estradão” o boiadeiro não tocava seu berrante, hoje, quando ele toca, “é muierada no galope”.
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É certo que a indústria cultural, dentro dos ditames das engrenagens e lógicas de um capitalismo tardio – capaz de cooptar e absorver até suas críticas e antípodas – não discerne nenhum gênero ou manifestação artística que se pasteuriza sob seus domínios. Ao mesmo tempo, o fenômeno do “agronejo” parece a epítome de uma compreensão de um setor produtivo (e predatório) da relevância do capital simbólico para a sua manutenção e expansão. Assim, os números de visualizações de vídeos do gênero sobem na mesma velocidade que os de safras recorde de soja transgênica tipo exportação.
Essa promiscuidade entre indústria cultural, capital financeiro e capital simbólico já é por si só um campo fértil (com o perdão do trocadilho) para a investigação, elaboração formal e provocação. Soma-se à isso as relações que se estabelecem também entre o setor do agro e as instâncias de poder, a fé e seus fundamentos ideológicos – não por acaso, temos no congresso a bancada BBB: boi, bala e bíblia.
Ao mesmo tempo, a temática rural, sertaneja, tem sido presença constante nos grandes veículos de comunicação; basta observar o recente remake de “Pantanal” ou mesmo a nova novela da Globo, “Terra e Paixão”, cuja abertura conta com uma nova versão do clássico “Sinônimos”, com Ana Castela – maior fenômeno do “agronejo” – cantando ao lado de Chitãozinho & Xororó. A arena está montada, e os oito segundos do peão serão sempre lapsos do que é possível de se abordar, problematizar, assombrar.
Talvez o primeiro assombro seja precisamente o do fascínio: ainda que uma análise fria possa observar a relação explícita entre o alto nível de investimento financeiro e a disseminação de eventos e realizações culturais que enaltecem os “valores do agro”, há de se deixar levar pela espetacularidade sedutora por trás das grandes produções – sejam elas musicais ou festivas, e aqui pensando precisamente no ambiente do rodeio. Se hoje Marco Brasil Filho canta que “essa festinha na fazenda vai ter mais mulher que boi”, enquanto Castela afirma que “a patricinha virou boiadeira”, é importante refletir sobre essa transformação do imaginário rural; uma reafirmação – ainda que dentro de perspectivas marcadamente normativas – do próprio status, de um modo de vida que seria desejado e cobiçado por quem vive nas cidades.
Não que se trate de compreender esse fenômeno como espontâneo – pois está longe de ser – mas sim de não ignorar o apelo que suas características carregam para uma boa parcela da população do país. Também é importante notar as associações destes movimentos com os acontecimentos políticos dos últimos anos, visto que trata-se mais de causa do que sintoma. O Vertigem parece extremamente consciente disso, fazendo da estrutura da encenação a própria desconstrução do rodeio enquanto celebração normativa de “um Brasil”, alterando os discursos, corpos e vozes da figura do locutor e, pouco a pouco, criando um maior estranhamento dentro dos quadros do grande show de variedades que constitui parte de “Agropeça”.
Durante o MIRADA 2022, em Santos, ainda sob o nome provisório de “Rodeio”, o grupo apresentou uma abertura de processo, seguida de bate-papo. No início, a dramaturgista Bruna Menezes contextualizou a pesquisa do trabalho, criando um chão comum para a leitura do que ali se veria. Não havia ainda o Sítio de Lobato, mas as contradições suscitadas pelo material já estavam presentes desde o primeiro momento: Lee Taylor, artista colaborador da primeira fase do processo, era o locutor que anunciava que “o agro é pop”, e era difícil desassociar a mensagem à hipocrisia da Rede Globo, que, enquanto transmitia “Pantanal”, trazendo na obra um discurso ambientalista e belas paisagens do bioma brasileiro, nos intervalos louvava o setor produtivo responsável por sua destruição.
Além disso, contradições na recepção também surgiram no diálogo posterior, especialmente em dois receios: por um lado, a lida com o que há de cativante naquele enquadramento de mundo e o perigo de uma adesão do público; por outro, de uma espécie de generificação do sertanejo, desconsiderando o que há de genuinamente cultural em manifestações dos interiores, da vida caipira, formativa (positiva ou negativamente) para muitas pessoas que vieram de pequenas cidades.
Na obra que levanta a poeira do galpão do Sesc Pompeia, o que se verifica é que nenhum dos medos se concretizou: enquanto o próprio desenvolvimento de “Agropeça” busca esgotar o fascínio, a inserção das personagens do Sítio colaborou para que o espetáculo circunscreva – de maneira performativamente dramática – muitas das violências deste universo dentro de recortes específicos, navegando entre representações sociais bem definidas pela dramaturgia da cena.
A história do Teatro da Vertigem fala por si em diversos aspectos; sua relevância e estatura no teatro nacional – e internacional – é inegável, e em muitos momentos de sua trajetória o grupo já demonstrou sua ousadia e coragem diante de embates com a “opinião pública”, como nas temporadas de “Paraíso Perdido” em igrejas e “Apocalipse 1,11” em presídios. O enfrentamento proposto em “Agropeça”, portanto, dialoga com expedientes de certo modo comuns ao grupo. Ao mesmo tempo, o que resulta do processo que trabalhou com duas linhas de força bem definidas é uma obra que talvez se fragilize no confronto dos materiais.
Enquanto a espécie de apropriação a contra-pêlo do Sítio do Picapau Amarelo já carrega uma força em si própria, a percepção crítica da obra de Lobato não é exatamente nova, especialmente no que tange o racismo presente na construção de personagens negras – aqui, aliás, o foco em Anastácia (Mawusi Tulani) chega até a gerar um comentário autocrítico em um fragmento: André D’Lucca, que interpreta o Saci, lança no ar a pergunta “cadê o Tio Barnabé?”. “Agropeça” se aprofunda em proposições relativas à questões de gênero, trazendo um Pedrinho (Vinicius Meloni) que encara as facetas da masculinidade normativa, fazendo de Coronel Teodorico (Paulo Arcuri) uma dura figura paterna, uma Narizinho (Lucienne Guedes) que parece almejar um assenhoramento da própria narrativa, trazendo à tona as tantas violências que assolam a mulher, e uma Emília (Tenca Silva) travesti, fazendo da boneca uma presença dissidente do sistema cisnormativo.
Ao mesmo tempo, Pedrinho e Narizinho são as únicas personagens nas quais se verificam contradições, complexidades inerentes à condição humana. Dona Benta (Andreas Mendes) surge como representação de uma branquitude que tem dificuldades de compreender-se, no máximo, como “boa sinhá” – e aqui, vale apontar, há uma contradição performativa na escolha de uma intérprete trans para o papel. No Visconde de Sabugosa (James Turpin) ressoa algo do “Inglês Maquinista” de Martins Pena em suas vestes e modo de falar; um estrangeiro inescrupuloso. Em Anastácia, sua consciência racial aliada à evocação de forças ancestrais são o foco da construção da personagem. Já o Saci é quase um flâneur, sempre à margem da cena, um vento que circunda a arena.
Assim, a potência restitutiva que poderia implodir toda a lógica que sustenta o Sítio, o rodeio, o agro, está ali, apontada. Porém, ao não se deixar atravessar por contradições, acaba por correr o risco de tornar-se apenas uma imagem destacada; uma composição de certo modo chapada, ainda que ansiando conclamar futuros.
Por outro lado, a desestruturação proposta nos quadros de variedades do rodeio oscilam em suas tessituras, constantemente na direção do que emergem como tentativas de seu esgotamento. “Agropeça” traz verdadeiras pérolas em muitos momentos, como quando da transformação de Guedes de uma representação de Nossa Senhora a uma cantora gospel; de “Romaria” à “Absoluto”, em uma bela síntese dos caminhos da fé no país. Também cenas onde a palavra é instrumento crítico e performativo, como quando Narizinho só utiliza palavras começadas com a letra “P”, ou nos insistentes jogos de palavra de Emília – “a esperança vendeu o medo” é um achado.
No encadeamento dos quadros, a impressão que fica é a de que, diante de um processo rico, denso, de pesquisa, na organização do trabalho algo resultou difuso. Diversos dispositivos e procedimentos cênicos apontam para a possibilidade latente de aprofundar o debate, lançar provocações mais agudas, arriscar-se de fato naqueles “oito segundos” sobre o boi e suspender a identificação do público, fazendo-o questionar se é ele quem laça ou é ele que será laçado – e o tanto de nuances que talvez existam entre essas duas ações.
“Agropeça”, ao investir na “policultura” como combate ao latifúndio do agro e suas manifestações monoculturais, busca suspender peões ao longo de séculos naqueles instantes de montaria. Se os anos que se celebram no aniversário do Sítio do Picapau Amarelo são aumentados a cada sucessiva menção, há algo que não cessa nos ciclos que se sobrepõem. Nos séculos de Brasil, nas horas de duração de um espetáculo, nos meses de processo criativo, são muitos os tempos em oito segundos.
[colabore com a produção crítica de amilton de azevedo: conheça a campanha de financiamento contínuo para manter a ruína acesa!]
*errata: na primeira versão deste texto, havia a afirmação equivocada de que Lee Taylor participou da novela “Pantanal”.
serviço Agropeça Teatro da Vertigem Data: 04/05/2023 a 11/06/2023 de quarta-feira a sábado às 20h, domingo e feriado, às 17h Local: Sesc Pompéia - Rua Clélia, 93 – Lapa – São Paulo - SP | Galpão Ingressos: R$ 50 (inteira), R$ 25 (pessoas com +60 anos, estudantes e professores da rede pública de ensino); e R$ 15 (Credencial Plena). Classificação indicativa: 14 anos | Duração: 120 minutos ficha técnica AGROPEÇA Uma criação do TEATRO DA VERTIGEM Texto: Marcelino Freire Concepção e Direção Geral: Antonio Araújo Co-direção: Eliana Monteiro Desenho de luz: Guilherme Bonfanti Performers: André D' Lucca, Andreas Mendes, James Turpin, Lucienne Guedes, Mawusi Tulani, Paulo Arcuri, Tenca Silva e Vinicius Meloni Artistas Colaboradores: Nicolas Gonzalez (1ª e 2ª Fase) Lee Taylor (1ª Fase) Dramaturgismo: Bruna Menezes Assistente de Dramaturgismo: João Crepschi Conceito do Espaço: Antonio Araújo Cenografia: Eliana Monteiro e William Zarella Junior Sound Designer Associados: Randal Juliano, Guilherme Ramos e Kleber Marques Figurino: Awa Guimarães Visagismo: Tiça Camargo Direção Musical e Trilha Original: Dan Maia Direção vocal: Lucia Gayotto Videografismo: Vic von Poser Preparação Corporal: Castilho, Ricardo Januário Preparação Corporal (1ª Fase): Fabrício Licursi Direção de movimento: Castilho Assistente de Direção: Gabriel Jenó Assistente de Iluminação: Giorgia Tolaini Músicos: Lisi Andrade e Ricardo Saldaña Operação de luz: Giorgia Tolaini Operador de Áudio: Fernando Sampaio Operadoras de Projeção: Júlia Ro e Vic von Poser Operadores de Câmera: André Voulgaris e Matheus Brant Operadores de seguidor: Igor Beltrão e Lays Ventura Contrarregras: Clay Dalim, Flores Ayra, Gabriel Jenó e Jacob Alves Cenotécnico: Zé Valdir Albuquerque Montagem, Pintura e Tratamento de Cenografia: Elástica SP Cenografia Costureiras: Francisca Rodrigues e Cleonice Barros Correa Sonoplastia dos Ensaios: Dener Moreira Aulas de Laço: Gui Sampaio Crânios de Boi: Vinicius Fragata Máscara Rabicó: Pietro Schlager Tradutor Yorubá: Mariana de Òsùmàrè Assistente de arquitetura: Maria Piedade Acompanhamento no projeto de luz: Chico Turbiani Estagiária de Direção: Julie Douet Zingano Estagiário de Iluminação: Felipe Mendes e Caio Maciel Fotos: Lígia Jardim Documentarista: Padu Palmerio Designer: Guilherme Luigi Assessoria de Imprensa: Canal Aberto Produção: Corpo Rastreado – Leo Devitto e Gabi Gonçalves