“Caroço”, do Abacaxepa, é semente germinando
resenha do álbum de estreia da banda Abacaxepa, “Caroço”.
Em 2016, um grupo de amigos e amigas que cursavam teatro na Escola Superior de Artes Célia Helena decidiu ensaiar algumas músicas e tocar no Encontro de Propostas Artísticas (EPA), que acontecia na escola. Três anos mais tarde, o Abacaxepa lança seu primeiro álbum: Caroço. Depois de algum tempo tocando covers e versões em pout-porri de músicas brasileiras mais ou menos consagradas, iniciaram sua fase autoral que amadureceu no primeiro EP, lançado no início do ano passado com o mesmo nome da banda.
A formação daquela primeira incipiente apresentação aumentou e se rearranjou. Nos vocais, Bruna Alimonda, Carol Cavesso e Rodrigo Mancusi dividem o protagonismo nas faixas e constroem atmosferas conjuntas inventivas, que transcendem uma harmonização óbvia. A cozinha tem Juliano Veríssimo, inicialmente apenas percussionista, que leva essa vivência para os andamentos na bateria, Fernando Sheila e seu carisma no baixo, Vinícius Furquim com um teclado versátil e Ivan Santarém nas guitarras e violão. Foi com a entrada de Santarém que o Abacaxepa sedimentou sua identidade — curiosamente, é o único integrante que não passou pelo curso de teatro do Célia Helena; mas já trabalhava como músico em espetáculos.
Mesmo aventurando-se e amadurecendo enquanto conjunto musical, a teatralidade da banda se evidencia nos shows e não deixa de estar presente em Caroço. Na interpretação das canções autorais, emerge a compreensão das músicas como dramaturgias, histórias sendo narradas. Já verificava-se isso no EP Abacaxepa. O dia que Maria levantou tem diálogos e interações que constroem até mesmo o ambiente onde a ação se situava.
Com a parceria do produtor Ivan Gomes, o que se nota no álbum de estreia do Abacaxepa é um processo carinhoso e delicado de maturação de cada música. Seja na nova gravação do que pode ser visto como o primeiro hit da banda em seus shows, Pimenta, seja na surpreendente Por Enquanto É Chuva, primeira composição autoral do grupo e só agora gravada.
Nos temas, a acidez do abacaxi, a urgência da xepa. Caroço transita sem nenhum pudor entre amor, humor, política e poesia. Jogos de palavra, metáforas sutis e outras bem diretas: o Abacaxepa transpassa em suas músicas sua pluralidade. Nas referências, ritmos e movimentos artísticos brasileiros também fluem com criações diversas.
Talvez a grande recorrência seja a necessidade de dizer. É no caroço que está a semente. Em tempos recrudescidos como os atuais, é cavando fundo que se garante sua germinação. Caroço faz isso com beleza e força. No caminho do álbum, resistência e leveza seguem lado a lado. A arte da capa, assinada pela fotógrafa Flora Negri, traz um olhar prestes a nascer, que passa a impressão de estar há muito tempo ansiando por vir ao mundo.
Para começar, comer um Abacaxi Azedo e parodiar Rita Lee como um cartão de visitas para o que se pode encontrar dali pra frente. A guitarra dançante de Santarém se apoia no sólido baixo de Sheila na divertida música. Aos que escutam a banda pela primeira vez, a intensidade, entre a doçura e a acidez da letra, da voz de Alimonda captura a atenção.
Em Olhos da Cidade, a sobriedade instrumental encontra a firmeza de Cavesso nesse pulso da cidade, que começa a se desfazer lentamente na voz de Mancusi; aos poucos a atmosfera torna-se mais fluida, como o mar e suas ondas. O jogo vocal que se estabelece com a entrada de Alimonda, seguido do solo de Santarém transforma o que antes era a frieza do concreto. Intenções vocais e instrumentos contam tanta história quanto a letra.
Então chegamos na Xepa. Na dinâmica entre o flow de Mancusi e o instrumental, o ouvinte é lançado para o caos do fim-de-feira. Ao passo que conta de episódios facilmente imaginados, há ali também a urgência daqueles cuja “panela tá vazia / não tem o que cozinhar”.
Piracema, lançado como single do álbum, vira a chave e constrói uma linda poesia. Sobre a coragem e a necessidade de nadar rio acima. Música para dançar coladinho, mesmo. Nas três vozes, uma celebração da diversidade do amor; do aprender a navegar.
A batida do funk abre Pimenta, já lançada anteriormente como single pelo Abacaxepa. Aqui, o tema é abertamente político — o que não o afasta do carinho; afeto e ação andam de mãos dadas nas músicas da banda. A letra remete à manifestações e à truculência não apenas policial, mas a violência que se lança sobre o outro, sobre o divergente. No meio da música, uma ruptura para uma espécie de sambinha, quase um respiro coletivo no vozerio que canta — apenas para a cozinha voltar com tudo no solo de Furquim e a constante levada de Veríssimo e sua explosão.
A faixa seguinte, Semente Cadáver, é uma parceria artístico-afetiva da banda. A letra é um poema de Liana Ferraz, que foi professora de boa parte do Abacaxepa. Publicado em Elas estão quietinhas, foi musicado pela banda e resulta em um interessante diálogo entre o ritmo dançante e as densas imagens que se constroem nos vocais. O medo profundo do não-dito e para onde vão as palavras mortas traz uma incrível potência para esses jovens com tanto a dizer.
Em Crudo, Santarém acompanha no violão uma melancólica Alimonda entre tempos possíveis de viver, do mato ao asfalto. Poética e curta, a música funciona como um intermezzo entre as duas que podem ser consideradas as canções mais intensas do álbum.
Por Enquanto É Chuva foi a primeira composição do Abacaxepa. Depois de muito tempo de maturação, a banda decidiu finalmente gravá-la. Furquim e Santarém compõem aos poucos a atmosfera por onde a voz de Cavesso navega, e Veríssimo constrói sutilmente seu crescente. As vozes de Cavesso e Mancusi dissipam-se numa bela paisagem sonora que remete à faixas de post-rock. A música vai ganhando corpo em seu tempo próprio, o que potencializa a explosão final onde se verifica a força deste conjunto musical — e, sem dúvidas, a acertada parceria com Gomes na produção.
Subitamente, Picadinho corta esse clima e nos lembra que o Abacaxepa é tudo isso, junto e misturado. A brasilidade do ritmo, uma levada irreverente de Alimonda e um livre e leve brincar com as palavras e seus sentidos e sonoridades.
Para terminar, o Abacaxepa sai pela rua em Remédio pra Gente Grande e novamente olha ao seu redor. A crítica volta-se para a fé cega e seus efeitos colaterais. Furquim, Santarém e Sheila sustentam uma base que torna a música talvez mais leve do que sua mensagem. A voz de Mancusi traz seriedade e quando Veríssimo entra com Cavesso e Alimonda ouvimos os últimos gritos — menos cansados do que o povo observado — de Caroço.
Do humor à análise mais densa de certos temas, o Abacaxepa costura suas referências com a compreensão de que elas servem para voar mais longe e não para prendê-los ao chão. Nascida de forma irreverente e espontânea, com uma trajetória de versões deliciosas de músicas já conhecidas, carrega esses traços nesta fase atual, de autoralidade e descobertas. Caroço não só germina, mas projeta anseios de novos plantios.