teatro

entre transes e o trânsito: viver para lembrar, lembrar para contar

crítica de “A Cobradora”, da Zózima Trupe.

[com colaboração de Andréa Martinelli na edição]

Depois de doze anos pesquisando o ônibus como espaço de compartilhamento e pesquisa teatral, a Zózima Trupe toma a corajosa decisão de pensar uma obra para o palco italiano. Com encenação de Anderson Maurício e dramaturgia de Claudia Barral, A Cobradora traz para a cena muitos dos saberes conquistados ao longo da trajetória da Trupe e inteligentemente experimenta novas possibilidades.

No solo multimídia, Maria Alencar “cobra as dores e dobra os amores”: a atriz multiplica-se em relatos de cobradoras das linhas de ônibus da cidade de São Paulo e arquétipos do feminino — além de inserir também dados de sua própria biografia. A personagem-narradora é Maria das Dores, que prefere ser chamada de Dolores.

Desde a entrada do público, percebe-se uma figura no centro do palco, encoberta. Construindo uma atmosfera misteriosa em seu prólogo, o espetáculo parece desde ali evocar todas as mulheres da História. O pano que esconde Alencar pode remeter a uma burca. Em sua ação de despir-se aos poucos, os figurinos revelam distintos signos do ser-mulher. Como se, de forma simultânea, fosse necessário dar conta de toda uma trajetória e livrar-se de cargas presentes ali para então pensar em liberdade.

Destacam-se três momentos: a imagem inicial, com um quê místico-religioso; seguida do vestido branco, uma menção ao matrimônio, mas que também dialoga com a vida de Alencar; e por fim, o uniforme da Cobradora. Parece haver, em certo sentido, um recorte de classe na temática da obra.

Maria Alencar em “A Cobradora” / foto: Christiane Forcinito

Curioso notar as tantas significações que partem desta escolha. Primeiro, a própria relação da Zózima com uma classe trabalhadora que coabita o espaço cênico tradicionalmente utilizado pela companhia: é quase uma forma de levar o ônibus para o palco — o que também se dá na cenografia de Maurício e Nathalia Campos; uma espécie de coletivo desconstruído onde o assento da cobradora é também altar. Além disso, no fluxo entre mitos, arquétipos e cotidianos, aquela que zela pela catraca torna-se espécie de guardiã de encruzilhadas.

Há ainda o jogo de palavras presente na dramaturgia de Barral. Sempre hábil com suas construções poéticas, a autora — em sua terceira parceria com a Zózima — investe na ideia daquela que cobra. Pois o espetáculo é também uma afirmação do feminino como potência política, compreendendo quem são essas tantas Marias que trabalham, vivem, amam e sustentam nossa sociedade.

Assim, Evas, Liliths, Marias e mulheres que correm com os lobos sobrepõem tempos, dores e amores — assim como Adãos são constantemente retomados como possibilidade de reinvenção do humano. A empreitada é de certo modo pretensiosa pelo horizonte que se desdobra a partir disso; o acerto da Zózima é transitar entre a comunicação direta dos relatos e certas abstrações na lida com o arquetípico.

Maria Alencar em “A Cobradora” / foto: Christiane Forcinito

Nos espetáculos da Trupe, costuma haver um equilíbrio potente entre os universos do cotidiano e da poesia. Na necessidade de capturar um passageiro eventual em Os minutos que se vão com o tempo, peça que acontece em ônibus de linha, há uma atenção constante ao contato direto e afetivo com as pessoas que estão coexistindo naquele trajeto. Ao mesmo tempo, há um refinamento poético que decanta em uma inventividade aparentemente simples — como se o dia-a-dia fosse sempre o chão que impulsiona a arte.

Em A Cobradora, essas qualidades estão presentes: Alencar é uma intérprete carismática que captura facilmente o público quando a relação se estrutura de maneira mais direta; são momentos onde a Zózima banha-se de sua profunda pesquisa e trajetória — e sua capacidade de produzir imagens-síntese potentes, como na cena com o megafone.

Por outro lado, há o salto investigativo dado pela Trupe na direção de construir a encenação. O videomapping de Leonardo Souza (responsável também pelo conteúdo dos vídeos) e Otávio Rodrigues, assim como a iluminação de Tomate Saraiva e de Rodrigues podem remeter, de algum modo, ao trabalho da Zózima junto ao Agrupamento Andar7 em Iracema via Iracema. Ali, o ônibus estacionado ganhava outros ares, e parece haver um certo desdobramento disso na desconstrução levada ao palco.

Maria Alencar em “A Cobradora” / foto: Christiane Forcinito

Entre cenas que estruturam-se como ritos e que trazem o cotidiano e o trânsito, A Cobradora experimenta linguagens, joga com elementos recorrentes e traz novos para a trajetória da Zózima Trupe. Deslocando-se entre momentos de atmosferas diversas, a encenação por vezes parece disparar mas também frear transes.

As histórias que se desdobram lidam, entre humor e densidade, com as forças e as dores do feminino. A encenação mantém essa categoria como algo amplo, trabalhando com uma iconografia judaico-cristã ocidental na maior parte do tempo. Atenta ao risco de incorrer em impressões genéricas, potencializa-se nas narrativas das cobradoras paulistanas e suas formas de lidar com violências que lhe afligem.

Sabendo que não há catarse alguma que resolva, A Cobradora evoca todas as mulheres para que elas permaneçam vivas, senhoras de si — em seus ofícios, em seus amores. Alencar constrói e desconstrói cenas, altares, cadeiras, catracas. Personagem, narradora, atriz, mulher, Maria. Ao trazer múltiplas narrativas, a Zózima Trupe sedimenta a experiência destas mulheres como protagonistas da própria história. Para as que virão, lembrar das que se foram.

Maria Alencar em “A Cobradora” / foto: Christiane Forcinito