destaque, teatro

da performatividade dos territórios de pequenos deuses (ele fazia do plástico amarrado num fio sua pipa desejosa de vento)

crítica de A Cidade dos Rios Invisíveis, do Coletivo Estopô Balaio

Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras. (As Cidades Invisíveis, Italo Calvino)

Brás. Tatuapé. Engenheiro Goulart. USP Leste. Comendador Ermelino. São Miguel Paulista. Jardim Helena – Vila Mara. Itaim Paulista. Jardim Romano. Cerca de quarenta minutos sobre trilhos separam uma das principais estações de transporte metropolitano de São Paulo, na região central da cidade, até a última parada da linha 12-Safira que ainda está dentro dos limites do município. A Cidade dos Rios Invisíveis, do Coletivo Estopô Balaio, começa neste trajeto: paisagens sonoras, entre ficções e depoimentos, propõem um fluxo d’água entre o que pulsa enquanto potência e o torpor cinza da metrópole.

São tatus cavando fundo. Prédios subindo alto. Casas-caixas-de-fósforo; empilhadas, incendiadas, habitadas. Terras dos pequenos deuses. Bueiros abertos. Pescadores das profundezas. O Estopô Balaio fricciona a vista das janelas com o que se escuta nos fones de ouvido de seus espectadores; é sobre as cidades que existem e sobre as cidades que poderiam. Sobre pássaros migrantes que neste pouso desaprenderam a voar, como diz um trecho.

No vagão, ator e atrizes espalham pílulas-provocações sintéticas que amparam a busca de capturar o invisível – missão maior da travessia. É tudo uma questão de edição. Avançar o olhar. P E R S P E C T I V A, lê-se nos post-its espalhados como ponto de fuga. As pequenas frases compõem com a realidade do trem – seus passageiros sonolentos, seus avisos e proibições – e com a paisagem que se vê e que se ouve. 

É aqui onde Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, emerge mais diretamente enquanto inspiração, ainda que sem dúvida ela permaneça por toda a obra. Mas no trabalho do Estopô não há Kublai Khan; não há o conquistador a quem se relata sobre as mais distantes cidades-existências do imenso império. Não; somos todos Marco Polo em suas andanças e aventuras. E A Cidade dos Rios Invisíveis é em si imensidão.

O movimento do trem introduz o público às primeiras memórias alagadas. Serão muitas. Existir, menina, é morrer. Não existir é desaparecer. São pistas, caminhos possíveis, um tatear que habita e preenche cabeça e coração até a chegada na cidade de desembarque. Então, a banda que recebe os viajantes convoca também as mãos: nelas estarão os mapas das ruas e rios; e convoca também as rosas brancas, lançadas como homenagem às passagens daquelas e daqueles cujas lembranças seguem vivas nas casas, parentes e amigos. Foram muitas as rosas lançadas. Tempos de pandemia, onde o pedido de ajuda é ainda menos escutado pelo poder público.

Antes, já era melhor gritar enchente do que socorro. Assim alguém se mobilizava. Ainda que fosse apenas para registrar as imagens e noticiar o alagamento do bairro – entre 2009 e 2010, foram mais de três meses debaixo das águas do rio Tietê; de lá pra cá, outras tantas vezes. Água, lama e pó: o ciclo das enchentes se repete e é aqui também tornado poesia. Poesia e crítica. O Estopô Balaio faz de seus espectadores uma equipe de documentaristas no deslocamento pelas ruas e vielas do Jardim Romano. É vida ou é cena? A inquietação surge primeiro como pergunta; A Cidade dos Rios Invisíveis dá a resposta: é vida e é cena. 

Linguagens se misturam e se somam ao longo das horas do dia – dramaturgia sonora, espetáculo de rua, dança, música, poesia, teatro, performance, intervenção urbana, grafite, cenas de convívio; de algum modo, estamos diante de uma obra de arte total, talvez não na proposição tradicional do termo, mas em uma atualização à luz das possibilidades do fazer artístico na contemporaneidade, na metrópole, principalmente nas bordas da metrópole, em todas as suas potências éticas e estéticas. Pra quem me chama de morto sem ter motivo, quanto mais vocês me matam mais eu me sinto vivo, cantam Dunstin e Matheus de Sá.

Eminentemente épica, a encenação dirigida por Jhoao Junnior formaliza na narratividade as memórias colhidas de moradores do bairro: artistas do Estopô, familiares, vizinhos e  conhecidos. A dramaturgia, assinada por Ana Carolina Marinho, Juão Nyn e Junnior (com colaboração do elenco), ao integrar público como equipe de documentaristas, sustenta uma interessante dialética em torno do próprio deslocamento e do olhar que se lança sobre essas narrativas periféricas, suas representações e imaginários – cena exemplar no sentido da exploração de tais contradições é quando Nyn metadirige Keli Andrade enquanto, com um tablet, foca em seu olho na expectativa de lágrimas.

A Cidade dos Rios Invisíveis insere-se na tradição do teatro performativo não apenas por essa relação de implicação de seus próprios atores/performers, mas fundamentalmente pela vida do bairro. A performatividade intrínseca ao trabalho é a do território que ela conta e habita: novas construções mudam a perspectiva de certas cenas, mudanças de moradores fazem com que outras caiam e distintas relações se estabelecem com essa vizinhança sempre aumentando. Passam carros e motos, cães dormem no estreito caminho entre os muros, alguém embriagado participa da ação, uma discussão acalorada em uma casa invade a encenação. É vida e é cena, diz a dramaturgia: a afirmação é constantemente ratificada pela realidade.

O bairro é outro. O bairro é outro? Lá estão as crianças, os pequenos deuses que abençoam a vida e a arte ali insistente. Durante a última imagem da obra, um deles cruzou a cena. Diante de nossos olhos, o novo, ali, com um saco plástico amarrado a um barbante feito de pipa. Desejos de céu na beira de rios. 

(…) quanto mais se perdia em bairros desconhecidos de cidades distantes, melhor compreendia as outras cidades que havia atravessado para chegar até lá, e reconstituía as etapas de suas viagens, e aprendia a conhecer o porto de onde havia zarpado, e os lugares familiares de sua juventude, e os arredores de casa (…) (As Cidades Invisíveis, Italo Calvino)


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serviço
temporada de 12 apresentações
Abril: 03/04 | 10/04 | 15/04 | 16/04 | 17/04 |  21/04 | 24/04 
Maio: 01/05 | 08/05 | 15/05 | 22/05 | 29/05
Domingos e Feriados - Início às 14h na Estação Brás.  
(Ponto de encontro; plataformas 6 e 7 linha 12 SAFIRA)                                                                                              

Ingresso consciente: www.coletivoestopobalaio.com.br (pague o quanto quiser, inclusive nada). Não está inclusa a passagem de trem (R$4,40). Os ingressos são válidos até às 13h30 do dia da apresentação. 

Duração: 4h
Classificação Indicativa: Livre.
É obrigatória a apresentação da carteira de vacinação contra a COVID-19 com no mínimo 2 doses e um documento de identificação com foto.

ficha técnica
A Cidade dos Rios Invisíveis
Coletivo Estopô Balaio

Direção: Jhoao Junnior
Dramaturgia: Ana Carolina Marinho, Jhoao Junnior e Juão Nyn
Colaboração dramatúrgica: Elenco
Elenco: Adrielle Rezende, Ana Carolina Marinho, Anna Zêpa, Bruno Fuziwara, Carol Piñeiro, Clayton Dalim, David Costa, Keli Andrade, Juão Nyn, Júlio Lorosh, Paulo Barqueiro
Trilha sonora Trem-Ato: Marko Concá
Concepção de dispositivo sonoro: Carol Guimaris e Doutor Aeiuton
Poesias: Emerson Alcalde, Jacira Flores e Sérgio Schiapin
Canções: Diane Oliveira, Dustin Farias, Matheus Farias, Juão Nyn, Marko Concá
Figurino: Jhoao Junnior
Artes Visuais: Mara Carvalho, Felipe Urso, Ignoto Graffiti, Anna Zêpa, Coletivo Estopô Balaio, Clayton Lima, Paula Mendes e moradores do Jardim Romano
Dança de Rua: Bia Ferreira, Mell Reis, Luan Pinheiro, Jeanz Dance, Kayque dos Santos e Moisés Matos
Produção: Wemerson Nunes/ WN Produções
MCs: Dunstin e Matheus de Sá
Percussão: Josué Bob
Contra-regras: Clayton Dalim, David Costa, Lisa Ferreira
Participação especial: Junior, Seu Vital e Seu Antonio
Crianças: André, Clara, Emily, Gabi, Grazy, Julia, Maria, Marquinhos, Suemy e Susan
Designer Gráfico: Anderson Leão
Sonoplastas: Jomo e Bruna Moreti
Assessoria de Imprensa: Thaís Peixoto - ComunArte
Secretaria: Lisa Ferreira
Receptivo: Keli Andrade e Lisa Ferreira
Realização: Coletivo Estopô Balaio e Governo do Estado de São Paulo