a afirmação do escombro
crítica de “Festa de Inauguração”, do Teatro do Concreto.
De um táxi na frente do Sesc Pompeia desembarca uma figura com cabeça de dinossauro. Tira um relógio de sua maleta. E então um martelo. O tempo é arrebentado quando se inicia “Festa de Inauguração”, do Teatro de Concreto — grupo de Brasília que, após 16 anos de trajetória, realiza a primeira temporada de um espetáculo em São Paulo.
O fóssil vivo instaura então uma atmosfera onde a forma pela qual olhamos para a História e o registro de seus atos será a todo momento passível de questionamento e crítica. Apresentam-se as grandes distâncias daquilo que foi construído, desconstruído e, essencialmente, destruído e os afetos proximais daqueles quatro performers que desejam inserir-se nestes processos. Desde o início, estabelece-se um trânsito entre as cidades, existentes e já desaparecidas, e os corpos que nela habitam — ou habitaram.
Brasília é elemento disparador, mas a encenação de Francis Wilker — com codireção e dramaturgia de João Turchi — visita territórios já soterrados e reconstruídos muitas vezes com muitos nomes. De estátuas de deuses gregos à destruição de Pompeia, “Festa de Inauguração” fragmenta-se em quadros cuja essência são os escombros e a vida que insiste em se revelar neles.
A ruína como afirmação do que existiu e do vir a ser; o que se preserva e o que se sepulta com o novo que tem poder de enterrar o passado? E como lidar com o já existente? Ainda na rua, os quatro performers passam a inaugurar seu entorno, de calçadas à semáforos, incluindo espectadores e transeuntes. A relação com as transformações do espaço urbano é também uma constante: “Oh! Brasília, esperei-te tanto!” é a faixa vista na foto antiga exibida ao público. Aguardada enquanto era construída, segue hoje campo de expectativas e projeções de futuro.
E, além do que há, o que era o entorno da ação: espaço da temporada de estreia, o Sesc Pompeia fora antes fábrica. Também, o que poderia ter sido; os espaços da memória que passam a existir apenas em lembranças — árvores cortadas, casas derrubadas, enfim: a cidade segue sendo um organismo vivo que se reorganiza constantemente. Ainda, há o que não se revela por muito tempo dentro das construções que nos circundam.
O gatilho para o trabalho do Teatro de Concreto se deu em 1959 — como uma performer afirma ao longo da obra, foi ali que este espetáculo começou. Mas isso não era sabido até 2011, quando um vazamento no salão verde do Congresso Nacional exigiu reparos. No caixão perdido entre dois andares, frases com desejos de futuro dos operários que transformaram projeto — e sonho? — em realidade.
Muitas das frases aparecem ao longo de “Festa de Inauguração”; e ainda que haja uma carga fortemente simbólica e política na tida como inspiração central, por assim dizer, a encenação não fala sobre a construção de Brasília, tampouco sobre seus construtores na década de 50. O grupo verticaliza, a partir deste estímulo, uma reflexão fragmentária e performativa que atravessa questões particulares e sociais acerca da memória do que se constrói — e o vislumbre da destruição como ato talvez inevitável à criação.
Sem conceber efetivamente personagens, os quatro performers em cena — Gleide Firmino, Micheli Santini, Adilson Diaz e Diego Borges — se relacionam diretamente com os espectadores praticamente em todos os momentos do espetáculo. Ao adentrar o espaço cênico, o público é convidado a contemplar e destruir uma obra. No que se estrutura muitas vezes de fato como uma festa, nesta inauguração há um ímpeto de dessacralizar o já consolidado. Formas de catalogação museológicas são questionadas poeticamente — e a reflexão acerca do que habitará os museus do futuro é uma excelente provocação.
O Teatro do Concreto se referencia diversas vezes ao longo da encenação; se trata de um olhar daqueles performers sobre a própria trajetória, também como busca de compreender o que se transformou — neles e em suas ações, na cidade e em seus espaços. O que restou como ruína, o que emergiu dos escombros. Há uma afirmação constante do ato teatral no espetáculo; a metateatralidade performática reverbera nos figurinos de André Cortez, entre roupas elegantes contemporâneas e de outrora — e a versatilidade de sua cenografia também possibilita interessantes e diversas composições sob a batuta de Wilker. A iluminação de Guilherme Bonfanti está simultaneamente dentro e fora do espaço de ação, tornando-se por vezes camada quase central de certas cenas.
Nas projeções de Thiago Sabino e Fábio Rosemberg, muitos registros do que parecem ser trabalhos anteriores do grupo. No momento onde “Festa de Inauguração” volta-se para pensar sobre as palavras e o que elas revelam, escondem, constroem e destroem, é nas paredes que elas ecoam, ressoando o silêncio dos performers. A obra tem um teor político que pulsa até mesmo em seus momentos de depoimento pessoal — o vínculo do grupo com o espaço urbano (e, inevitavelmente, Brasília) parece ter imbricado em seus corpos este desejo de colocar-se sempre em relação a ela, mesmo quando as inquietações partem de cada um deles.
Das inaugurações às desinaugurações, o Teatro do Concreto questiona como se aprisionam deuses festivos em sóbrias estátuas e que narrativas se ocultam por trás de corpos que se abraçam preservados em lava, costurando uma série de narrativas episódicas em torno da memória, preservação, destruição e criação. O dinossauro que destrói a temporalidade tradicional no início do espetáculo retorna, fóssil vivo e corpo selvagem, só para ser domado. Que esqueletos preservados ocuparão as salas de museus?
No momento em que Diaz tira o figurino aristocrático que o distingue dos demais, sua nudez estabelece uma bonita homenagem à história escrita nos palcos; da mortalidade do artista à permanência do efêmero da arte. “Eu quero um país que não está no retrato” — o samba-enredo campeão da Mangueira parece também ecoar na desconstrução do nobre e no questionamento à lida com a memória histórica de nosso país.
Entre o tanto engatilhado desde o início e que se desenvolve de forma explosiva, cabe ainda destacar a potência de Firmino durante toda a encenação. Primeiro jogando com Jocasta e a tragédia apenas para aproximar-se da figura de sua mãe e da construção de sua própria linha do tempo. Depois, na metáfora final que se conecta ao estímulo primeiro de “Festa de Inauguração”; os desejos esperançosos de futuro escondidos por trás de paredes brancas são o corpo negro de Firmino. “Brasil, chegou a vez / de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”.
Caminhando sobre os fragmentos da obra contemplada e destruída pelo público, Firmino, Santini, Diaz e Borges se mantém instáveis para prescrutar o que se soterra e o que se revela no permanente fluxo entre apagamento e memória. Da destruição pode-se redescobrir o novo. Antigas ou recentes, ruínas e seus escombros são não apenas convites à reconstrução, mas a constante afirmação de uma incompletude do mundo — e da vida.
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