o infinito artifício de seguir-vivendo
crítica de “Vitaminas“, do Núcleo de Pesquisa Intimidade, do grupo XIX de teatro, com direção de Rodolfo Amorim e Clayton Mariano. este texto faz parte do projeto “5 x XIX“, contemplado pela 40ª Edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo – Secretaria Municipal de Cultura.
No jardim de um sujeito de roupão e chinelos que constantemente triangula com o público, ouvem-se risadas em off. Enquanto uma mulher conversa, legendas demonstram o desespero que ela vive. Noutro momento, um diálogo é inteiramente dublado por gravações. Em meio às discussões de um casal, comentários feitos diretamente para a plateia são narrações que substituem a ação. Nada disso soa estranho e tudo isso soa estranho em Vitaminas, do Núcleo Intimidade do grupo XIX de teatro. Rodolfo Amorim e Clayton Mariano dirigem Ericka Leal, Gabriel Muglia, Igor Mo, Jessica Mancini, Jonathan Moreira, Lígia Fonseca e Rebecca Leão na encenação que parte de situações e personagens de contos de Raymond Carver e Lucia Berlin para pensar na verdade, no artifício, na realidade e no realismo.
O antigo armazém da Vila Operária Maria Zélia onde o XIX reside desde 2004 é dividido em espaços de intimidade totalmente inacreditáveis; são verdadeiros estúdios do falso sobre tablados, cada um com seu fundo infinito branco, como se prontos para receber gravações de audiovisual – daquelas onde a grama do vizinho é sempre mais verde, no que vai se desenhando desde o início como uma comédia da Sessão da Tarde em uma chave pateticamente triste. Amorim e Mariano fazem de Carver e Berlin fontes para dar a ver a contaminação de nosso imaginário desde os contos e seu realismo deprimido até a hegemonia cultural norte-americana, que contagiou corações e mentes com filmes de high-school, comédias românticas e o american way of life, sempre observando tudo a partir de um prisma de valoração universal daqueles desejos e realizações.
Então, a realidade descrita ali é base para se pensar nas possibilidades do realismo diante do realismo capitalista como descrito por Mark Fisher em seu livro homônimo. O referencial estadounidense é fonte de chacota desde o início. Uma subjetividade individual vista como origem e destino de todos os problemas e crises vivenciadas é ao mesmo tempo encarada com seriedade e também escrachada diante da percepção de uma depressão sistêmica espraiada pelo cotidiano não só brasileiro e nem apenas dos países que vivem às margens do sistema capitalista, mas quase na totalidade da existência humana sob o jugo desta ordenação socioeconômica.
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Em despeito ao que afirma um personagem, não há vencedores no que é representado em Vitaminas. O que não necessariamente é ruim: diante desta realidade, talvez o fracasso seja uma boa opção ou algo do tipo. Na relação com o produto-título da obra, em certo momento defende-se o placebo e talvez seja esse algum modo de síntese da materialidade proposta pela encenação: escancarar a realidade pelo seu avesso, pelos infinitos artifícios que envolvem o seguir-vivendo. Lá está tudo que se pode produzir que não é da ordem daquilo que de fato é; a paródia, o estranhamento, a crítica e o cinismo – o que, conforme Fisher aponta em seu livro, já foi inclusive absorvido pelo próprio capital, e Vitaminas não lança mão desses usos de forma ingênua.
No primeiro ato, todas as convenções possíveis são erigidas e se estabelecem sem grandes intercorrências na recepção – já acostumada a tais recursos em obras audiovisuais de maior e menor qualidade e relevância artística – para além da própria fruição que se pergunta em torno dos porquês de tais escolhas diante das situações, delicadas, tensas, tristes, apresentadas. Amorim e Mariano tensionam a estética realista dos contos com um realismo performativo, sem abrir mão de um zelo com a primeira e sem aderir de maneira acrítica à segunda.
É a partir do segundo ato que Vitaminas busca de fato ir de encontro mais diretamente com aquilo que parece estar no cerne de suas intenções: estabelecer um diálogo entre esse imaginário colonizado e suas possibilidades de subversão – ou, até mesmo, implosão – contemporâneas. Se desde o início bebidas alcóolicas estão espalhadas por toda a parte, de modo que este e outros sintomas, causas, consequências e lidas com a depressão e outras doenças sistêmicas estão na materialidade da cena, é a partir deste retorno a um caos primordial que o subtexto e a sutileza ganham a superfície, quando os nichos passam a não significar mais nada e há uma inversão do lugar da ação e do público.
No que se estabelece como verdadeira invasão, para além do espaço tomado há também uma tomada de consciência, possibilidade de ruptura daquelas personagens com os artifícios, como que compreendendo os graus de ficção que os cercam – não se trata de uma metateatralidade, mas uma perspectiva que permite romper com aqueles enquadramentos. Os personagens percebem-se personagens de si próprios dentro dos jogos de representação que se acumulam e se aniquilam em Vitaminas. No centro do armazém, as convenções se suspendem no sentido das lógicas internas propostas por cada um dos estúdios do falso, por cada nicho, tablado, palco, casa, relação, intimidade.
Quando Luís Alberto de Abreu aponta para suas hipóteses em torno da personagem contemporânea, fala de matrizes kafkianas e beckettianas: os personagens “não estão apenas perplexos como Joseph K. nem apenas com a ansiedade passiva de Vladimir e Estragon. Passaram à ação. Todos os dias, em qualquer lugar do mundo, topamos com consciências fragmentadas, com seres perplexos que, no entanto, agem. Uma ação descontínua, sem objetivo, sem sentido e, como toda ação teatral, dramática, violenta”. Então, mesmo diante deste total descolamento com aquele ordenamento que regrava e regia cada uma das vidas ficcionais postas em cena, as personagens continuam buscando seguir-vivendo, mesmo que isso signifique construir novos artifícios ou simplesmente tomar consciência deles.
ficha técnica Vitaminas foto de capa: Jonatas Marques Orientação e direção: Rodolfo Amorim e Clayton Mariano. Elenco: Ericka Leal, Gabriel Muglia, Igor Mo, Jessica Mancini, Jonathan Moreira, Lígia Fonseca e Rebecca Leão. Dramaturgismo: Clayton Mariano. Cenário: Rodolfo Amorim. Objetos de cena: Jessica Mancini. Figurino: Lígia Fonseca. Técnico responsável: Roberto Oliveira. Direção de produção: Andréa Marques. Realização: Grupo XIX de Teatro e Lei de Fomento para a cidade de São Paulo.