arquipélago, destaque, teatro

fazer do palco coxia escura onde luz dança no contratempo

crítica a partir de Véspera, de Fernanda Stefanski (SP). este texto faz parte da cobertura especial da Mostra Solo Mulheres 2024, do Teatro de Contêiner, com curadoria de Tati Caltabiano; amilton de azevedo é uma das pessoas realizando o acompanhamento crítico do festival. o ruína acesa faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica.

“As palavras, junto com os olhares, meneios e gestos / Que ela faz, dão pra acreditar / Que realmente ali há um pensamento, bastante incerto; / Mas muito doloroso” (Horácio, sobre Ofélia. Hamlet; Ato IV, cena V).

Enquanto o público da Mostra Solo Mulheres entra no Teatro de Contêiner, Fernanda Stefanski está deitada sobre um imenso tecido azul que cobre piso e paredes do espaço. Como a célebre Ophelia de John Everett Millais, pintada em 1851 e provavelmente a representação imagética mais difundida (e referenciada) da personagem shakespeariana, a intérprete se afoga para então tornar-se mergulhadora de si. Véspera, com concepção, direção, dramaturgia e atuação de Stefanski, traz para a cena uma atriz que é uma personagem morta.

Entretanto, a Ofélia de Stefanski está cheia de vida: o espaço da ação é a coxia; um palco, longe dos olhos do público, recebe uma encenação de Hamlet. No jogo metateatral de Véspera, aquilo que Shakespeare não escreveu torna-se matéria de invenção – para além da morte da personagem, anunciada por Gertrudes na sétima cena do quarto ato, o que não se viu de Ofélia? Não se trata de releitura; não é “aquela que o rio não conservou” de Heiner Müller. Véspera, se algo neste sentido, é outra Europa de outra mulher. É a posta em ação da ideia de que “nós sabemos o que somos, mas não o que seremos”, como diz Ofélia entre cantos lamuriosos ao entrar em cena “fora de si“, como aponta a rubrica citada pela atriz que performa e narra a personagem que espera suas deixas enquanto já tem consciência de seu fim anunciado.

E Stefanski também canta; lamentos tortos em busca de afinação. Há uma beleza plástica na encenação, algo de solene na atmosfera inicial, que é rapidamente desfeita nas ações da intérprete. Véspera, “dia que imediatamente precede aquele de que se trata”, como anuncia o dicionário, é um confronto entre tempos, como se a própria cena fosse véspera do que já se passou. Às vésperas de seu afogamento, Ofélia era “a mais aflita e infeliz das mulheres”, antes mesmo de perder seu pai. Aqui, é tomada por reflexões que transbordam o leito de qualquer rio. 

Isso porque Véspera constrói algo como um encontro entre o que habita essa mulher em entreatos e a torrente de pensamentos de GH, do vertiginoso livro de Clarice Lispector. A paixão segundo GH parece estruturar o ímpeto de Stefanski de lidar a todo momento com o próprio fluxo de pensamentos da atriz – não exatamente livre, improvisado, pois imiscuído ao que poderia ser um monólogo interno de Ofélia e contaminado pelas reflexões que emergem da visão da barata no quartinho do apartamento de GH, além de alinhavado por uma dramaturgia aberta mas ainda assim contornada. Véspera é o mergulho de uma artista no que invariavelmente pode afogar, mesmo que de vazio. 


  • Seja um apoiador: conheça a campanha para manter a ruína acesa
  • Mostra Solo Mulheres 2024: acompanhe também a cobertura de Lena Giuliano em cítrica
  • Leia mais: veja aqui outros textos do ruína acesa em torno da Mostra Solo Mulheres (2024 e 2022)

Há o risco de habitar o vazio, o constrangimento de habitar o vazio e uma insistência de seguir caminhando, ainda que pelas frestas, ainda que fugindo da luz. Stefanski questiona o público se está horroroso. “O horror sou eu diante das coisas”, disse GH, e então, sim, Véspera é sobre o horror e a incerteza de se colocar diante de algo, do outro, do abismo, da morte, da vida. E lá está a artista diante do público, buscando a escuridão de si, dessas personagens, de mulheres, de baratas, seres que fogem da luz, postos à sombra.

E ainda que reluza o brilhante azul do cenário de Marisa Bentivegna, a iluminação que mais se destaca é da cena que não está, vinda do palco onde a tragédia do príncipe da Dinamarca é contada. Véspera faz do palco coxia onde a luz, também de Bentivegna, dança no contratempo enquanto a atriz treme. É como se essa véspera do hoje fosse uma grande suspensão da descrição da morte de Ofélia feita por Gertrudes (Hamlet, ato IV, cena VII: Stefanski, “como sereia”, se mantém “boiando por um certo tempo” enquanto canta “fragmentos de velhas canções”. Até que suas roupas, “pesadas pela água que a encharcava”, arrastam “a infortunada do seu canto suave / à morte lamacenta”. Num ato simbolicamente performativo, a atriz corta parte de seu cabelo, uma pequena morte possível para a cena. 

Mas por baixo do belo vestido, Stefanski está preparada para as profundidades. Mergulhadora, entre o vozerio de Hamlet e o vozerio da rua, entre a representação não vista e o irrepresentável da realidade, preenche sua Véspera com algo que habita de Hamlet, com algo que habita de A paixão segundo GH e muito de si. Entre elementos do real e narrativas ficcionais, resta ao público construir o próprio horror diante das coisas, daquilo que fica e daquilo que se esvai; de uma esfiha do Habib’s à putrefação, de um tapete que cai quase sobre a atriz ao tabuleiro do Jogo da Vida. Nestes fluxos vesperais, um agora que se descreve em tempo real enquanto também no tempo outro do teatro; a angústia narrada performada de algum modo vivida ainda que em entreatos de algo outro.

logo do projeto arquipélago
ficha técnica
VÉSPERA


Concepção, Direção, Dramaturgia e Atuação: Fernanda Stefanski
Projeto Audiovisual e Tecnológico: André Zurawski
Cenografia e Desenho de Luz: Marisa Bentivegna
Figurinos e Adereços: Chris Aizner
Trilha Sonora e Desenho de som: Arthur Decloedt, Charles Tixier e Pax Bittar
Interlocução Artística: Bruna Betito
Fotografia: Ligia Jardim
Registro Audiovisual: Otavio Dantas
Arte Gráfica: André Zurawski e Fernanda Stefanski
Operação de luz: Rodrigo Damas
Operação de som: Pax Bittar
Assessoria de Imprensa: Pombo Correio
Gerenciamento de Redes Sociais: Zava
Intérprete de Libras: Fabiano Campos
Produção: André Zurawski e Fernanda Stefanski
Assistência de Produção: Larissa Miranda
Apoio: Oficina Cultural Oswald de Andrade, IBT - Instituto Brasileiro de Teatro, Espaço das Pequenas Coisas, EAI - Espaço de Artes Integradas

ficha técnica
MOSTRA SOLO MULHERES 2024

Teatro de Contêiner (idealização e produção), Tati Caltabiano (curadoria), Léo Akio (direção de arte, coordenação de comunicação e design), Pombo Correio (assessoria de imprensa), Marcos Felipe (comercial e coordenação de produção), Virginia Iglesias (produção administrativa e financeira), Gustavo Sana (produção executiva e consultoria de projetos), Paloma Dantas (coordenação técnica), Pedro Augusto (coordenação técnica), Camila Bueno (técnica), Lucas Bêda (produção executiva), Sandra Modesto (produção executiva), Sônia Cariri (produção, receptivo, camarim e bilheteria), Thamiris Cariri (lanchonete), Danee Amorim (produção e receptivo), Paula Silva (produção, receptivo e serviços gerais), Isabelle Iglesias (produção e rede social), Nara Oliveira (coordenação de libras), amilton de azevedo - ruína acesa (acompanhamento crítico), Lena - Cítrica (acompanhamento crítico).