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V FESTÃO: dos (im)possíveis

olhar crítico sobre as obras do V FESTÃO  –  Festival Regional de Teatro, organizado pela Rede Teatro   - Metropolitana de Sorocaba (Votorantim, agosto de 2024). amilton de azevedo viajou a convite da organização. o ruína acesa faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

(…) pois sempre faz sentido escolher o impossível em vez do possível. Insensatez é aceitar o possível. (Stig Dagerman, A Política do impossível)

Poder acompanhar um festival em sua totalidade ao longo dos anos, em suas diversas configurações e realizações, é de algum modo um privilégio; também uma responsabilidade. Desde 2019, quando o FESTÃO estava em sua segunda edição, acompanho o festival da região metropolitana de Sorocaba como crítico convidado. Além de assistir a todos os trabalhos apresentados, faço a mediação e a condução de uma roda de conversa voltada cada vez mais não apenas às obras mas também ao pensamento do festival, seus caminhos, desejos, circunstâncias e (im)possibilidades. 

Nesta quinta edição, a roda ocorreu na Conferência FESTÃO, no dia 24 de agosto, em Mairinque (uma semana depois da realização do festival, novamente em Votorantim), no formato do Boteco Crítico, ação performativa em crítica criada coletivamente por mim (amilton de azevedo), Fernando Pivotto (Tudo, Menos Uma Crítica/SP), Guilherme Diniz (Horizonte da Cena/MG) e Heloisa Sousa (Farofa Crítica/RN).

Este texto também faz parte de minha participação junto ao FESTÃO. Em 2019, falei dos laços políticos, poéticos e afetivos; em 2021, sobre o fato de que a retomada possível é coletiva; em 2022, que um festival se faz no caminhar. Agora, pensar em torno dos (im)possíveis parece adequado ao momento vivido pelo festival e por sua coletividade organizadora, a Rede Teatro – Metropolitana de Sorocaba. Mais adiante, alguns olhares e palavras sobre cada obra apresentada. 

Parece importante sempre observar os recortes do que se vê na programação – sem perder de vista uma série de circunstâncias que envolvem essa construção. Não há exatamente uma curadoria; a equipe de produção lança um chamamento para as pessoas que fazem parte, direta ou indiretamente, da Rede Teatro, e a partir disso organiza-se o possível. Há uma oscilação de recursos a cada edição e, sem dúvidas, essa instabilidade (que habita muito além da agência destes artistas-articuladores) não colabora com a realização do FESTÃO; basta notar que, para além da edição de 2020, impossibilitada pela pandemia, também não houve festival em 2023. 

Geralmente, recursos municipais da cidade que recebe o evento são a única fonte disponível para a viabilidade – talvez a grande exceção tenha sido o III FESTÃO, em São Roque, que contou com um ProAC vinculado à Lei Aldir Blanc, conquistado por Lisa Camargo, diretora da Companhia de Eros, por sua reconhecida trajetória nas artes. Isso faz com que muito do que pode se dar a existir no FESTÃO tem a ver com muito de desejo, articulação e algo do fazer-na-marra. 

Assim, o V FESTÃO, que se faz nos limites do possível, contou com 20 apresentações cênicas, duas rodas de conversa, uma oficina e a exibição de um documentário. Totalizando 24 ações, manteve-se com o mesmo tamanho do IV FESTÃO, também realizado em Votorantim – uma a menos do que a terceira edição do festival, de 2021, em São Roque. Porém, a presença de oito cidades da região é a menor desde o II FESTÃO, em Pilar do Sul, que contou com o mesmo número de municípios, ainda que outros, em 17 apresentações. Artistas e grupos de Sorocaba, Votorantim, São Roque, Araçoiaba da Serra, Quadra, Porto Feliz, Mairinque e Pilar do Sul estiveram nesta quinta edição.

Sorocaba segue, inclusive pela própria dimensão e centralidade da cidade, como a mais presente: foram onze obras dentre as vinte apresentadas. Votorantim contou com dois espetáculos, além do documentário e da oficina terem a realização de artistas da cidade. Além destas, São Roque também trouxe dois trabalhos; todas as demais cidades contaram com uma única representação – o que se compreende ao observar que muitas delas possuem apenas um grupo do teatro reconhecidamente ativo. 

A proporção é semelhante às das edições passadas, sempre com cerca de metade da programação vindo da cidade-sede da Região Metropolitana de Sorocaba (RMS). No que diz respeito à recorrência em edições seguidas do FESTÃO, também uma manutenção do equilíbrio entre novos grupos e aqueles que já haviam se apresentado: foram oito coletivos que estiveram no IV FESTÃO e doze “novos”.

É interessante observar uma presença maciça de solos; foram nove em 20 apresentações. Mesmo grupos como a Companhia de Eros trouxeram trabalhos individuais. É de se pensar sobre como, talvez, as limitações presentes nos modos de produção (precisamente a disponibilidade de recursos, tanto financeiros quanto materiais e até mesmo humanos, no que diz respeito ao tempo de cada pessoa) vêm se impondo sobre os modos de criação. Dos nove solos vistos, quatro podem se enquadrar na linguagem da palhaçaria, uma performance e uma apresentação de mágica. Um festival é muitas vezes o reflexo de um contexto, de uma realidade local, e parece sempre pensar em torno de suas funções diante destes possíveis.

Nesse sentido, há uma diferença brutal entre o V FESTÃO e as edições que o precederam: pela primeira vez desde 2019, não há a organização de um “acampamento” para que as pessoas participantes da programação possam ficar na cidade, concentrades num mesmo espaço, não apenas acompanhando a totalidade do festival mas também confraternizando. Em Pilar do Sul, uma chácara foi alugada para esta permanência. Em São Roque, o espaço de uma escola foi disponibilizado. Na edição de 2022 em Votorantim, uma sala do Aquário Cultural recebeu essa coletividade – o espaço, hoje, foi convertido em uma Biblioteca Municipal; não havia outro local.

Essa possibilidade de estar na cidade, ao longo de todo o festival, impacta também o público presente e o pensamento sobre o público que presencia. Para além das apresentações para as escolas, que lotavam o teatro, com crianças indo pela primeira vez a um espetáculo, fruto da parceria da prefeitura com o FESTÃO, as obras oscilaram também na perspectiva de quem está vendo, no sentido da frequência do teatro. Quem está indo ao teatro em Votorantim (e em São Roque, e em Pilar do Sul, e em Sorocaba)? É uma bonita missão de um festival, pensar seu caráter de formação de público para os lugares que o recebem. Ainda, a permanência das pessoas no acampamento nas edições anteriores, gerava uma bonita ação de assistir aos nossos pares, construir laços, enfim, artistas de uma região vendo artistas da mesma região. 

De certo modo, o que pode parecer lateral à primeira vista se mostrou um imenso diferencial. O FESTÃO é também celebração, fundamentalmente encontro. Não apenas para a construção e manutenção de relações pessoais, mas em especial um intercâmbio artístico, um diálogo que não se encerra após cada apresentação. Fez falta a possibilidade de viabilizar a acomodação de artistas, técnicos e grupos da RMS.

Durante o Boteco Crítico, o que emergiu nas conversas iniciais foi um debate em torno do que é, o que tem sido e o que se deseja ser do FESTÃO. Se a Rede Teatro surge em 2018 tendo como um dos objetivos centrais a criação e consolidação de um corredor cultural na RMS, a quantas anda esta tarefa? A pergunta aqui não surge enquanto cobrança, mas provocação – voltada também ao poder público; às secretarias municipais de cultura dos 27 municípios que compõem a região: a iniciativa e a articulação existe. Imagine só se houvesse interesse para viabilizar este bonito trânsito artístico?

O engajamento do poder público em suas várias instâncias é fundamental para uma ação do caráter do FESTÃO. Apresentar a produção local, em toda a sua diversidade e potências, dando espaço para grupos jovens, escolares, amadores, e também profissionais, reconhecidos não só no estado de São Paulo mas no país inteiro, com uma programação inteiramente gratuita: cada cidade que recebe este festival está ganhando um presente. Entendendo, também, a absolutamente necessária independência e autonomia em todas as etapas desta realização; da idealização às apresentações, passando pela curadoria, produção e mediação. Confiança e respeito. Que sonho seria o reconhecimento e uma mobilização que garantisse a estabilidade e a ampliação de uma iniciativa tão rica quanto a do FESTÃO. 

É de algum modo a partir do sonho, mas mantendo os pés no chão, que agora este texto tece algumas linhas em torno dos trabalhos apresentados no V FESTÃO. Confiando também na importância do registro daquilo que é por essência efêmero e na relevância da reflexão em torno da obra artística. Então, vamos, insistindo na tentativa da organização; do dizer sobre, do dizer a partir de. Na ordem das apresentações do festival que se iniciou em uma terça-feira fria, na praça, e depois correu ao longo de quatro dias, da quinta ao domingo.

O que fazer com as crianças, Cia. Lá de Casa de Circo-Teatro (Sorocaba)

Na noite fria do dia 13 de agosto, a tradicional Feira da Lua de Votorantim estava um tanto esvaziada. Quando a Cia. Lá de Casa começou os chamamentos para a sua apresentação de O que fazer com as crianças, não havia muito público; ainda assim, aos poucos, pessoas que passavam decidiam parar e pessoas convidadas chegavam. O clima, alguns problemas técnicos com microfones e a pouca adesão foram desafios extras para a família de palhaços e palhaças – além de circunstâncias indesviáveis, como o mal-estar de uma das crianças durante aquele dia.

Ao trazer as filhas para a cena, há algo de imprevisível neste sentido de como elas estarão no dia, na hora, a energia, a vontade. De algum modo, isso parece integrar a própria ideia por trás de O que fazer com as crianças. O título já traz um contexto, entre verdade e ficção, que motiva a criação: como um casal de educadores e artistas lida não apenas com as filhas em casa, mas na relação com seus afazeres e o fazer artístico. Assim, joga-se com a realidade, com a criação e com a pedagogia.

O que fazer com as crianças levanta boas questões com leveza e humor, sem deixar de apontar para si próprios, trazendo na costura dramatúrgica momentos de crítica e autocrítica. Lá estão os papeis de gênero sendo problematizados nas possibilidades de responder ao “que fazer com as crianças“, por exemplo. A Cia. Lá de Casa traz um interessante trabalho que cria uma situação narrativa para impulsionar os números circenses tradicionais. Então, une-se o carisma dos palhaços, os jogos de cena e a presença sempre divertida de se observar das crianças; o grand finale do espetáculo é, inclusive, a resposta: na dúvida sobre O que fazer com as crianças, brinque com elas.

Show da Drika, Drika (Sorocaba)

O Show da Drika é encantador. Há um crescente da técnica nos números apresentados, mas o que salta aos olhos é mesmo a beleza das imagens. Algo de magia se dá desde o início, com as bolinhas de sabão indo das mais comuns às inacreditavelmente grandes. Essa lógica de desenvolvimento acompanha toda a obra, também com os bambolês e com a dança, criando momentos de fascínio. Além disso, Drika também constrói um jogo de humor com a plateia, e é importante observar o quanto ele está efetivamente chegando; seja nas piadas ditas, onde há a questão tanto do microfone quanto de entendimento, seja nas composições físicas, que podem talvez serem mais exploradas em sua duração e dimensão. 

Oh So Pajasso, Cia. Lá de Casa de Circo-Teatro (Sorocaba)

A obra de Rodrigo Zanetti, da Cia. Lá de Casa, foi apresentada no IV FESTÃO; desse modo, já há apontamentos no texto correspondente à última edição do festival. Ali, apontamos que “A Companhia Lá de Casa, nesta brincadeira que é muito séria, faz do teatro espaço de puro encantamento”. Os pontos levantados naqueles parágrafos seguem pertinentes; inclusive a questão da trilha sonora, agora operada externamente, de modo mais fluido, mas permanece a impressão de que um pensamento maior em torno de sua composição poderia engrandecer essa aula-espetáculo que já é imensa.

Neste V FESTÃO, uma alteração significativa: na outra sessão apresentada, o público era formado majoritariamente por adultos; desta vez, crianças das escolas de Votorantim lotavam o teatro. Assim, a dinâmica se transforma; o professor-palhaço/palhaço-professor está falando basicamente com estudantes – e seus professores e professoras. Ao olhar menos atento, talvez o paralelo construído entre palhaçaria e pedagogia (algo intimamente ligado à vida de Zanetti) possa parecer ofensivo. É importante ressaltar que é o inverso: aproximar o encanto do brincar com o encanto do ensino-aprendizagem é um elogio mútuo à arte e à pedagogia. Zanetti joga no trânsito entre autoridade e licenciosidade, orgulhando o pofexô Paul Frei, cujo retrato no altar observa toda a ação.

Nas relações com o público, brincar entre crianças e adultos com o que se quer ser quando crescer; Oh So Pajasso é uma lembrança de que se pode ser o que quiser. A insistência em repetir que “agora vem a parte mais importante da história” é também afirmação política, que versa sobre a dificuldade do professor em sala de aula e também resgata a importância do ato de estar atento, em escuta. É mais complicado para Zanetti diante das crianças construir e sustentar espaços de silêncio do que na última apresentação vista, mas seu carisma e timing fazem de Oh So Pajasso obra de fato para todos os públicos.

Neste sentido, o ritmo e a atenção do intérprete foram prejudicados por uma espécie de interferência externa no V FESTÃO; uma aparente preocupação em torno de uma ação que seria realizada durante uma cena. Não só é fundamental resguardar a liberdade artística de criadores e criadoras, mas também é necessário lembrar da responsabilidade e da consciência que essas pessoas, que se propõem a fazer trabalhos voltados para as infâncias, possuem, conhecendo, tensionando e respeitando os limites do que se pode levar à cena. Zanetti é artista, palhaço, professor, cidadão. Os laços entre arte e educação se estreitam nas realizações da Cia. Lá de Casa. Não há riscos nisso. Apenas o das coisas melhorarem.

Sonhos, Quintais e Coisas Desimportantes, Os Companheiros (Sorocaba)

Durante a pandemia, a antropóloga Debora Diniz disse em entrevista que “o afeto que nos une agora é o desamparo“. O trabalho dOs Companheiros parece navegar por essa afetividade em construções cênicas que parecem dar a ver sociabilidades, identidades e comunicabilidades pandêmicas. Sonhos, Quintais e Coisas Desimportantes evoca Manoel de Barros desde seu título. Essa desimportância do poeta versa sobre o essencial à vida, e a encenação traz uma sucessão de quadros polissêmicos que carregam em sua aposta central a confiança na imagem, na magia, na imaginação.

Sonhos, Quintais e Coisas Desimportantes traz efeitos visuais refinados e um diálogo profundo com a trilha sonora. Seus objetos lembram da luz que há em todas as coisas. Um guarda-chuva brilhante, uma água em meio ao deserto é mensagem no mar da aridez. Pacotes de remédios manejados por um adulto-criança operam na própria contradição entre o livre brincar e a medicalização da vida. Novos corpos em movimento parecem reaprender a andar, cair, amar. Lá está a solidão do digital e o desejo pelo contato, pelo convívio. Os Companheiros oferecem ao público uma obra de deleite estético, construindo pequenas narrativas abertas à leitura e à recepção de cada uma das pessoas na plateia, preenchidas por indícios e vestígios de possibilidades de sentido.

Canteiro de Memórias, Coletiva Uma de Nós (Sorocaba)

A Coletiva Uma de Nós trouxe para o V FESTÃO uma obra que parece dialogar com o caminhar do grupo ao longo das últimas edições, quase como um desenvolvimento dos trabalhos apresentados na II e na IV edição – em ambas, Poesia que Espanca; primeiro em formato cênico, depois em audiovisual. Canteiro de Memórias bebe no diálogo destas duas materialidades, tendo no vídeo um suporte cuja delicadeza e planos fechados rememora a obra anterior – ainda que em certos momentos sejam utilizadas animações que parecem fora de tom dentro da construção poética e o esmero das demais imagens. 

Novamente é o feminino que se coloca no centro, nesta obra em uma perspectiva de memória, celebração e resistência das que vieram antes. As histórias das avós das artistas são o ponto de partida, e lá existe violência e sofrimento, mas se conta de muito mais. Há um foco, neste sentido, na continuidade e nos legados que pode correr um certo risco de alinhar maternidade e feminilidade, ainda que não se trate exatamente disso. 

Pedra, aqui, é muita coisa. É o que se coloca no caminho, mas é o fundamento sobre o qual se constrói. É semente plantada, vida semeada. No palco, as ações de Canteiro de Memórias estão concentradas em grande parte na lida com essas pedras; organizações e desorganizações, construção e destruição. É um universo interessante a ser explorado, ainda que possa se perceber uma certa repetição naquilo que se faz sem que haja, em alguns momentos, um aprofundamento das imagens apresentadas.

Neste sentido – e também na relação entre palco e tela – há de se pensar nas composições das visualidades e seus diálogos com as narrativas textuais; escolher conscientemente quando a ação sublinha o texto, quando um gesto é legenda para o vídeo, como se enlaçam organicamente fatos, documentos e criações, compreendendo que o resgate da memória é em si ato de invenção.

The Hot: 10%, Douglas Emílio (Votorantim)

O trabalho de Douglas Emílio talvez possa ser apontado como o que mais se aproxima da ideia de arte conceitual dentre toda a programação do V FESTÃO. Partindo da proposição de reagência, de Roberta Ramos Marques e Fabiana Dultra Brito (sobre o conceito, ver Reagências do/no presente: Propostas para o ensino de uma historiografia da dança corporificada e afetiva), Emílio parte de The Hot One Hundred Choreographers, de Cristian Duarte, para conceber seu The Hot: 10%, compreendendo a porcentagem como dimensão totalizadora do fazer: está na duração temporal da obra, mas também literalmente em seu tamanho.

Emílio, então, opera sua criação na construção da “relação de alteridade crítica entre presente e passado; entre diferentes contextos culturais, econômicos, geopolíticos; (…) entre conhecimentos tidos como científicos e outros tipos de saberes”, citando as pesquisadoras e considerando o diálogo de The Hot: 10% com sua “matriz”, talvez não historiográfica, mas referencial. Assim, na lida com um pequeno manequim-dançarino e uma série de cenários e adereços, Emílio revisita e re-agencia coreografias mais ou menos reconhecíveis para o público, de acordo também com o referencial de cada um, sem que isso se torne um fator limitante para a fruição.

Nesta dança de objetos, Emílio é agente e reagente, atuador e comentador em sua expressividade, gestualidade e participação. Lá está La Bête (2015), de Wagner Schwartz, e reagenciar a obra é também inserir na historiografia da dança toda a polêmica gerada quando de sua apresentação no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em setembro de 2019. E tanto mais se vê ali, do que se compreende e do que apenas se intui; do que se se lembra ou se imagina. The Hot: 10% é conceitual, sim, mas nem por isso torna-se hermética.

Mais que Mágica, Harold (Araçoiaba da Serra)

Harold entremeia seus números com humor; brinca com o próprio fracasso para estimular o engajamento do público, especialmente o infantil – as crianças participam ativamente, e a presença de seu filho como ajudante no palco é um elemento a mais no interesse daquelas do público. Com destreza na realização e organicidade na condução, Mais que Mágica diverte todos os públicos, com Harold inserindo “discretamente” piadas mais voltadas aos adultos. Há uma leve barreira no entendimento da língua; o mágico é espanhol, e seu português ainda carregado por vezes é de difícil compreensão. Nos propositais erros, Harold lança mão de um timing afiado, e a lógica de pensamento que vai construindo as ações é em si uma brincadeira compartilhada por mágico, participantes e todo o público.

O Canto da Lua, Arte Tulipa (Sorocaba)

Logo no início, a Arte Tulipa convida a um outro tipo de fruição: O Canto da Lua começa com a entrada tranquila do músico, tomando seu lugar no canto da cena, e enchendo sua xícara com algum líquido em uma garrafa térmica – uma sopa, um café? Seu olhar é receptivo, e um silêncio aos poucos se instaura. Um enorme e bonito painel ocupa o fundo do palco; atrás deles, sombras várias. Pássaros e a lua. Há aí uma possibilidade de melhor aproveitamento deste efeito inicial, seja entendendo de forma mais precisa as distâncias da iluminação para a melhor visibilidade das sombras, seja até na manufatura de objetos outros para além dos utilizados durante a obra, apenas para potencializar essa imagem.

Então, a chegança; a ideia de contação, uma narrativa de busca e os encontros que se dão no caminho, aliados, mentores, desafios, e então um final feliz, espécie de conciliação. Durante as músicas, uma interação animada do público infantil. Na encenação de O Canto da Lua, atores são manipuladores destes bonecos-seres, ora mais distanciados, ora totalmente implicados nas ações. Neste sentido, estes corpos-manipuladores sugerem momentos onde toda a expressividade está relacionada ao movimento das criaturas da ficção; há essa quase distinção entre eles-narradores e eles-seres – quando existe essa proximidade quase indistinguível, a corporalidade dos atores e atrizes poderia se apropriar ainda mais destas outras, fazer-se dança.

O Samba da Esposa Muda, Cia. Teatral 4 Cantos (Quadra)

Em mais uma marcante apresentação no FESTÃO, a Cia. Teatral 4 Cantos trouxe para o palco do Teatro Municipal de Votorantim O Samba da Esposa Muda. Desde a chegança, uma cantoria que toma conta da plateia, a batida do samba caipira conduz a obra. Um resgate, uma resistência dessa manifestação cultural típica do interior paulista, que é também celebração do que é o interior. Seria bonito, neste sentido, a presença de algum instrumento melódico para além da percussão. 

Nesta fábula caipira-feminista-conciliatória, o amor é do povo e o conhecimento liberta. A metáfora da mudez é tão óbvia quanto eficaz no andar da ficção. Na encenação, há uma divisão pedagógica entre os coros de narradoras, ao mesmo tempo que a multiplicidade de vozes garante também um efeito estético, que reverbera a coletividade naquele ato de pensar e agir que é central na trama. Passam pela cena tipos e sotaques, tudo realizado com respeito às tradições e também à realidade, sem incorrer em estereótipos. 

O Samba da Esposa Muda brinca também com referências contemporâneas, com a presença, por exemplo, de um PodCast cujo efeito não é meramente citação cômica, mas efetivamente age nos desenrolares da narrativa. Uma construção teatral onde o jovem elenco brinca em cena no contar dessa história que diverte enquanto conscientiza; O Samba da Esposa Muda pode ser visto como um espetáculo militante, mas que atua politicamente sem constituir-se enquanto um panfleto.

Correndo Contra o Tempo, Cia. Teatral Mistura de Gente (Sorocaba)

A Cia. Teatral Mistura de Gente parte de Buraquinhos, dramaturgia de Jhonny Salaberg, para a criação do monólogo Correndo Contra o Tempo. Aqui, a luz que circula é o tempo que passa mas também o ciclo que se repete. Bolas de gude e o brincar, panelas e a casa e o cuidado. E o lugar onde crianças pretas morrem. No figurino do ator, shorts, chuteira e paletó: presentes e futuros num mesmo corpo que deseja acima de tudo a vida.

Na camiseta, nomes tantos de vítimas do genocídio do povo pobre, preto e periférico. Na interação com o público, os sonhos que se pode ter. Na lida com a realidade, o que se perde e o que se ganha. A relação com os elementos cênicos – as bolas de gude, os objetos de cozinha, até mesmo a cadeira – parece ter ainda um campo de exploração no alinhamento entre texto e ação, produzindo assim novas camadas de sentidos e fricções entre o que se vê e o que se ouve.

Se Buraquinhos termina com um lufar de esperança na cena final, uma tentativa de reconstruir a realidade, Correndo Contra o Tempo se encerra com o corpo morto no chão, uma mensagem para a mãe, luz de serviço e ninguém em cena. Remove-se a esperança, se transformam as fantasias, e resta apenas algo da crueza da violência.

Documentário: Hudi-Fedegoso-Rocha, Guilherme Telli (Votorantim)

Da tenda do alto ao dentro da tenda: o documentário Hudi-Fedegoso-Rocha traz uma circularidade em sua montagem; é como se fosse um filme sobre o que o filme seria, visto que seu protagonista faleceu antes da realização. Guilherme Telli cria um espelhamento interessante no estabelecimento de um duplo, Hudi Rocha e Fedegoso, fazendo da obra quase que linhas paralelas paradoxalmente cruzadas – no próprio título, o palhaço está entre os nomes do artista. Os dois que foi, os dois lugares, as duas faces, os dois círculos sociais; a tenda, o bar. Na fotografia, cadeiras vazias; e um diálogo entre um dos amigos do Café no Bule e a cadeira preferida de Hudi-Fedegoso é de intensa beleza. Hudi-Fedegoso-Rocha traz, com leveza e emoção, as histórias de uma vida – sem deixar de lado pequenas idiossincrasias.

Toda Nudez Será Castigada, P5 Núcleo Experimental (Sorocaba)

Quando a encenação de Toda Nudez Será Castigada do P5 Núcleo Experimental começa, indica-se que haverá um pensamento interessante de composição neste gesto de trazer aos palcos um clássico de Nelson Rodrigues. Aos poucos, porém, o simbolismo inicial torna-se cada vez mais lateral, fazendo-se presente na simultaneidade dos espaços de ação, e a obra passa a ser mais e mais realista – a composição, especialmente no que diz respeito ao uso de um pufe central, passa a ser repetitiva e antecipável pelo público.

Desse modo, no encontro entre o realismo e as violências do texto, a obra, em sua adaptação e encenação, parece resultar em uma narrativa focada em Geni; em certo sentido, torna-se a tragédia da puta. No gesto de revisitar dramaturgias que carregam em si interessantes contradições mas também marcas de seu tempo, é fundamental atentar-se ao que resulta dessa aposta de inserção de criticidade, dessa mirada contemporânea e dos desejos da equipe criativa. Não é raro encontrar, neste tipo de iniciativa, um resultado que acaba por reiterar a violência que intencionava criticar.

A Sopa de Pedras, Saindo do Conto (Porto Feliz)

A pesquisa de Matheus Provazi em torno da figura de Pedro Malasartes já pode ser vista no III FESTÃO, com Pedro Malasartes em O Urubu Falante. Aqui, nA Sopa de Pedras, o ator e diretor revisita o personagem em outra de suas desventuras – onde a esperteza de Malasartes engana uma velha avarenta na feitura de uma sopa.

Na encenação, um gestual clichê na interpretação; também falas que poderiam ser melhor elaboradas, sintetizando alguns diálogos. No jogo entre as personagens, uma dinâmica divertida acompanha a atmosfera de A Sopa de Pedra. A estranha figura do violeiro bêbado, considerando se tratar uma obra em tese para todos os públicos, gera um certo ruído na composição do todo.

Minduin, Matéria dos Sonhos (Sorocaba)

Uma mulher escreve cartas em sua casa. Discute com sua faxineira. Algo de uma mania de limpeza, uma relação marcada por uma certa violência escancarada pela diferença de classes. Minduin, do Matéria dos Sonhos, carrega algo de uma tentativa rodrigueana, como que querendo contar de uma decadência burguesa, de uma senhora ríspida e rígida que, aos poucos, revela suas perversões. No desenrolar da narrativa, a obra se mostra a cada cena mais insólita, navegando em uma espécie de delírio, onde um mistério se instaura e sua revelação traz um dado quase sobrenatural, inexplicável. 

Entre o suspense e o cômico, perguntas permanecem no ar em torno do que está de fato acontecendo e do que a plateia está diante. Não ficam nítidas as intenções daquela dramaturgia, e a apreensão é confusa – certos momentos oscilam entre o terror e o risível de modo que restam dúvidas em torno das escolhas da encenação. A narrativa, no que parecem ser suas tentativas de tecer críticas em torno de certos comportamentos ou mesmo mergulhos mais profundos na subjetividade da personagem, resulta frágil, por vezes até pueril.

Maria em Terra de Gigantes, Cia. Circus Soul Arte e Produção (Mairinque)

Na contação de histórias da Circus Soul Arte e Produção, travessia e encontros: Maria em Terra de Gigantes é uma garota em fuga de seu destino-princesa. Em suas andanças, Maria se depara com bruxas e piratas e outras tantas possibilidades de ser para além daquilo que se espera. No jogo das duas atrizes e do ator, uma escolha por agir o que se narra em tempo real, criando uma composição dinâmica e atraente.

Nas máscaras, tipos da commedia dell’arte são evocados como inspiração para composições corporais e construções de personagens; os movimentos de Maria nesta Terra de Gigantes – não do tipo que se esperaria encontrar em contos de fadas, mas gigantes como mulheres de seus tempos – são acompanhados também por uma musicalidade que constrói as atmosferas de cada passo. 

Maria em Terra de Gigantes é eminentemente voltada para crianças e jovens, de modo que se pode refletir em torno de piadas e comentários inseridos na costura dramatúrgica, considerando sua efetividade e pertinência em relação ao seu público-alvo. A mensagem que sustenta o discurso da obra é, de certo modo, entregue diretamente; no desenvolvimento da narrativa, a intenção vai a cada cena se tornando mais cristalina e, quando Maria toma o lugar de narradora, assume para si a responsabilidade de contar o fim da própria história. Na última imagem, acompanhada de uma bonita poesia, celebra-se a luta feminista pela emancipação das mulheres e a liberdade para cada uma construir seu próprio destino.

Malabarismo Consciente, Mafê Vieira (São Roque)

Mafê Vieira apresenta uma escuta afiada para a relação construída com o público em Malabarismo Consciente. Com todos os números girando em torno de usos de sacolas plásticas, há algo de trágico sendo comicizado, quando pensamos sobre a produção de lixo e a crise climática atual. 

Da magia e do mistério à enrolação: Vieira brinca entre as poesias possíveis e uma certa bagaceira nesta lida com a materialidade e com o próprio desenvolvimento da obra, que se dá em contato direto com a plateia. A artista aproveita o que surge e é ágil na lida com as pessoas, com o plástico e com eventuais dificuldades técnicas na realização dos divertidos – e alguns, também, bonitos – números.

Moiras, Companhia de Eros (São Roque)

Originalmente produzido no contexto do projeto Eros Uma Vez, uma Retrospectiva, o solo As Moiras, da Companhia de Eros, com direção de Lisa Camargo e atuação e textos de Daniela Oncala, teve sua primeira versão em audiovisual, disponível no canal da companhia. Agora, no palco, Oncala cerca-se de pequenas velas e de tantos fios para, sinteticamente, levar à cena tudo entre nascer e morrer.

Parir, andar, correr, voar, envelhecer, morrer. As sete camadas de uma cesariana, o tanto de vida que há e deixa de haver. No círculo, uma espécie de espaço ritual se estabelece; na trilha de João Bid, canta-se para Nanã mas nas Moiras também se verificam símbolos de lutos outros, de religiosidades e espiritualidades diversas. As ações do tanto que há entre nascer e morrer estão no corpo e nas palavras de Oncala, e especialmente, evocando as figuras mitológicas que dão nome à obra, na lida com fios. Parir fios, estender fios, embolar fios, cortar fios. Na materialidade da cena, também água e sangue dão conta de um universo de sentidos do viver e dos caminhos.

No formato apresentado no V FESTÃO, também o final de Moiras é um corte interrompido: restam no palco algumas velas acesas, fios espalhados como que deixados ali. De algum modo, faz sentido. Entre quem veio antes e quem virá depois, Oncala ainda pode ver o seu destino a ser tecido.

A Cartomante, Grupo de Teatro Escarafunchar (Pilar do Sul)

Inspirados pelo conto de mesmo nome de Machado de Assis, o Escarafunchar faz de sua A Cartomante uma obra itinerante, construindo por espaços distintos no local de apresentação suas cenas, o que garante um interessante ar de mistério para a encenação. Para o V FESTÃO, diversos lugares em torno e dentro do Teatro Municipal de Votorantim foram utilizados; nesse sentido, houve uma questão circunstancial da grande adesão do público: algumas ideias no que diz respeito aos pontos e modos de observação diante de cada momento da narrativa ficaram prejudicadas pela escolha de ambientes muito íntimos para tantas pessoas.

De todo modo, ainda que um pouco atrapalhados por esse contexto, o Escarafunchar conduziu seus espectadores pela história de amor, traição e violência das personagens. A presença da cartomante faz com que a encenação tenha uma atmosfera mística crescente, auxiliada também pelas escolhas do como contar essa história. De perto, de longe, sob uma árvore, por entre as cortinas, como se olhando sempre pelo buraco da fechadura aquelas intimidades, segredos e afetos. 

A figura de dois narradores-condutores é fundamental não apenas por uma questão logística do encadeamento dessa cartografia cênica, mas também pela instauração e manutenção da atenção e da atmosfera proposta pelo Escarafunchar. Na apresentação vista, um humor talvez excessivo na relação com o público pode ter proporcionado um certo desarranjo entre intenção e realização, por vezes desfazendo a sobriedade da narrativa.

A Cartomante vai desenhando sua narrativa em idas e vindas – inclusive literais, na movimentação pelos espaços – e deixando algumas frestas a serem preenchidas. A escolha final é curiosa: oferecer aos espectadores a possibilidade de questionar as personagens diante dos fatos presenciados. Ali, inclusive, uma pequena confusão foi desfeita: uma manchete anunciada no início parecia se referir às personagens em questão, mas se tratava de outro fato, como que para estabelecer uma ponte entre o conto machadiano publicado originalmente em 1884 e a realidade insistente do país 140 anos depois.

Sudário/Reflorescer, Silvana Sarti (Sorocaba)

Silvana Sarti revisita uma obra criada há uma década e o transforma neste Sudário/Reflorescer. Em seus gestos, o comungar de um coração. Reverência. Como se diante de um campo-santo, criar um corpo-santo. Na obra, espirais de vidaflor. Há algo de Nem tudo são rosas, performance apresentada no III FESTÃO, neste apanhado de espinhos e pétalas. 

Na performance de Sarti, é bonito refletir sobre qual é o momento que se compartilha. Quando a performance se iniciou, quando ela irá acabar. A feitura do sudário foi em si performance? A revisita? O ato de dar função ao sudário, fazer dele mortuário de vivos? Sudário/Reflorescer é aquilo que resta de vida depois da morte: fazer das marcas de um sudário um jardim. 

O Céu é a Lona, Alê Malhone (Votorantim)

É a terceira edição do FESTÃO que conta com O Céu é a Lona, de Alê Malhone. Já na II edição, o ruína acesa apontou para o carisma do artista e o encantamento gerado pela junção de sua técnica e de sua escuta. Foi em Pilar do Sul que Malhone pode apresentar em uma praça pública; em São Roque, a realização no Centro Cultural Brasital possibilitou menos passagens inesperadas – e riquíssimas para o intérprete – que só a rua pode proporcionar. Agora, em Votorantim, O Céu é a Lona foi visto dentro do Aquário Cultural.

O espetáculo funciona em qualquer espaço, mas é visível que sua dimensão pública é fundamental para que ele exista em plena potência. Ao mesmo tempo, a viabilização de novos equipamentos e a feitura de um novo figurino garantiram a essa apresentação um visível crescimento no que diz respeito à visualidade da obra e também à sua operacionalização – não apenas a operação da trilha sonora, feita por Malhone, se tornou mais ágil, mas também o microfone permite uma compreensão perfeita de tudo que é dito. Vida longa à arte de rua!

Caixa de Brinquedos, Studio Teatral Núcleo Infantojuvenil (Sorocaba)

Em se tratando de obra criada em um contexto formativo, com um elenco formado por garotas jovens, talvez o mais importante a se dizer sobre Caixa de Brinquedos é da felicidade e do engajamento das atrizes em cena. Lá está uma narrativa simples, lá estão composições cênicas, mas especialmente está a diversão delas, e talvez seja disso que se trata.

No cenário, alguns elementos parecem não ajudar na movimentação e no contar dessa história pelas atrizes – muita coisa está colocada em cena, mas ao mesmo tempo há representações emuladas (como quando do alcançar um jarro de biscoitos).No que diz respeito às escolhas da direção, há certas atenções em torno de como dividir papeis e quais os discursos que estão sendo construídos ali, ainda que problemas possam parecer laterais, há uma grande responsabilidade neste ato formativo.

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Cinco edições. Sete anos desde o início das articulações para a criação e estabelecimento da Rede Teatro – Região Metropolitana de Sorocaba. Cada edição é um novo momento para rever a trajetória, repensar as rotas, seguir construindo e pavimentando caminhos. A diversidade segue sendo vista na programação, tanto no sentido das linguagens cênicas quanto nas cidades que trazem suas obras. Recorrências e novidades. Que se siga nesse equilíbrio, ainda que instável, ainda que frágil. Que novas ações preencham o calendário cultural das cidades da região, para que o FESTÃO não seja uma realização única, sempre dependente de tanto. Que se possa fazer mais e mais, com dignidade e recursos, e que não se extinga a chama do desejo. Que seja possível celebrar, mesmo diante dos impossíveis.

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