utopia quilombola do agora
crítica de “A Missão em Fragmentos: 12 cenas de descolonização em Legítima Defesa”, do Coletivo Legítima Defesa
foto de Cristina Maranhão
Corpos negros dançam no palco. Como que em uma dança de batalha – uma preparação para o grito que se seguirá. Um grito urgente; um grito estético. “A Missão em Fragmentos: 12 cenas de descolonização em Legítima Defesa” fala com (e dos) negros que são negros e dos negros que não são. Não é, entretanto, um discurso de conciliação. É sobre autorrepresentação e a descoberta de si. É sobre o mundo em que vivemos, seus possíveis e suas transformações, ressignificações e criações.
Em 2016, a partir da performance “Em Legítima Defesa”, apresentada dentro da MITsp do mesmo ano, estrutura-se o coletivo negro de mesmo nome. Com direção de Eugenio Lima, partem do texto “A Missão: Lembrança de uma Revolução”, de Heiner Müller, para aprofundar sua pesquisa ética e estética; o presente espetáculo é a decantação cênica de tal processo.
São pouco mais de duas horas de espetáculo que, ainda que tendo a narrativa de três encarregados de liderar uma revolução na Jamaica como fio condutor, apresenta uma gama complexa de referências, além de interferências épicas e performáticas. Ainda que a fábula se passe em outro tempo-espaço, somos lembrados a todo tempo de que se está falando do aqui e do agora.
Seja através da fala de diversos pensadores, ativistas e políticos negros, referenciadas diretamente pelos atores e atrizes do coletivo, seja pela potência – que remete à performance originária do Legítima Defesa – da fala direta com o público, confrontado com dados e nomes de vítimas do genocídio negro que ocorre paulatinamente em nosso país; somos lembrados de que a Jamaica, a França, o Haiti, toda a África… é aqui.
E África é muito mais do que costumamos pensar. Com colaboração do sul-africano Neo Muyanga na música e a presença de Eugenio Lima nas pick-ups, beats da cultura hip-hop se misturam a canções em línguas africanas, o soul se encontra com o rap e vislumbramos, minimamente, a complexidade cultural do povo negro. Tal complexidade também está presente nas escolhas estéticas da obra; não há só uma forma de se falar da negritude em cena.
No jogo cênico da encenação, “todxs somos negrxs”, vestindo e retirando nossas máscaras; num mundo de senhores e escravos, ainda que com uma miríade de recortes possíveis e necessários, a grande luta é a luta de classes. E este subalterno, seja de qual esquina de mundo for, dança, canta, fala, escuta, grita, estuda e cria.
Os recortes, no entanto, não são esquecidos. O discurso é assertivo e em contato direto com a estética: a descolonização também é a de cada um de nós, de nossos pensamentos, de nossas relações. A crítica ao discurso racista é evidente e gritante pela simples exposição dele per se. Ao vestir a máscara de Debuisson, um filho de senhor de escravos, a atriz negra ou o ator negro não precisa buscar uma linguagem farsesca ou grotesca para escancarar a violência e o ridículo de seu pensamento.
Ainda dentro de uma possível leitura acerca do caráter conciliatório do espetáculo, é importante ressaltar que não há qualquer possibilidade de concessão. Esta é a missão que nos foi conferida e é por ela que lutaremos, da forma que for necessária. E enquanto no mundo houverem senhores e escravos, ninguém estará dispensado desta missão. Se omitir é escolher o outro lado. A liberdade só existe para mim se existe para todos.
Dentro de um alinhamento preciso entre ética e estética, na busca por resgatar a história de quem nunca a escreveu, de forma poética ainda que militante, a encenação nos apresenta e nos convida a pensar um novo mundo possível: uma utopia quilombola do agora.