teatro

uma partilha de Sísifo

crítica de “DOC. AAA”, do NAC – Núcleo de Artes Cênicas, com direção de Lee Taylor

foto de Marcelo Villas Boas

Recebido pelo moderador do encontro, o público encontra um lugar para se sentar. Em pouco tempo, percebemos que os atores já estão ali, também, entre nós. As escolhas da encenação de “DOC. A.A.A.” ponderam bem entre necessidades cênicas e a construção de um ilusionismo contemporâneo, que insere os espectadores naquela reunião de “Adictos de Afeto Anônimos” e gera uma eficiente identificação com a dramaturgia trazida sutilmente pelos atores e atrizes.

Seguindo a proposta artístico-pedagógica dos últimos anos do Núcleo de Artes Cênicas (NAC), “A.A.A.” se insere no projeto Antologia Documental, construindo-se a partir de entrevistas realizadas pelos atores-criadores. Trata-se, portanto, da recriação, por cada intérprete, da história de alguém. Sob a batuta de Lee Taylor, que, além de coordenar o NAC, concebe e dirige o espetáculo, Anderson Vianna, Flávia Meyer, Giovanna Siqueira, Livia Matuti, Paulo Victor Gandra e Rebeca Ristoff constroem de forma extremamente delicada – e por isso, potente – pessoas que viveram tais histórias. Há um enorme desafio em se colocar de maneira orgânica em tais situações, e o elenco se equilibra neste sentido.

Gandra, o moderador, é o único dos atores cujo texto não advém unicamente do material coletado em entrevistas. Dentro de sua interpretação – muito bem trabalhada, vale apontar –, a acertada inserção de referências à mitologia trazidas em suas falas redimensiona a subjetividade daquelas histórias. O caráter arquetípico das referências passa a permear o todo. Dessa maneira, a identificação com as personagens passa a ser mais ampla. Como em um grupo de apoio real, onde as batalhas enfrentadas por cada pessoa ali presente dizem respeito não só à elas, torna-se difícil sair daquele espaço sem ser tocado por ao menos alguma das narrativas.

Assim, tais relatos sobre a dependência afetiva que contamina todos nós na atualidade atravessam e inserem o espectador na reflexão levantada. São relatos sobre afetividades românticas, familiares, de amizade; afetividades poéticas, leves, duras, violentas. Cada uma com suas particularidades, atingindo de maneira mais ou menos significativa cada pessoa no público.

Ao mesmo tempo em que as narrativas individuais são trazidas em monólogos, os demais atores interagem de alguma forma com o que está sendo contado. São momentos onde a linguagem deixa de se apoiar na imersão realista proposta e passa a inserir elementos outros; e não há problema no teatro que se assume teatro. Tal recurso também auxilia na universalização de vivências pessoais.

Em um dado momento desta quebra, os atores passam a correr em círculos; ao passar pela mesa – um dos poucos elementos do cenário – tocam insistentemente uma campainha. Uma nova referência mitológica possível cuja leitura é aberta por esse ciclo – também pela percepção da repetição quase insuperável de nossa dependência – é o trabalho de Sísifo. Nossa insistência em carregar fardos montanhas acima, ainda que sabendo que invariavelmente o fracasso chegará, faz com que na lida com os afetos também sejamos Sísifo. Ao mesmo tempo, a dependência deles faz com que por vezes sejamos a rocha carregada. Permanentemente buscando o cume, seja levando conosco um outro, seja na necessidade de ser levado por ele, inviável é parar – ou subir sozinho.

Quando o espaço é aberto para depoimentos pessoais do público, ainda que nem sempre alguém se apresente, a sugestão já lança a reflexão: ‘se eu quisesse ir ali, que história contaria?’. “DOC. A.A.A.” traz para dentro da obra todos ali presentes. Mesmo que uma ou outra figura não apresente um relato que gere identificação, a atmosfera instaurada torna os espectadores não apenas cúmplices, mas participantes – ainda que em silêncio.

O espetáculo cumpre sua premissa do mesmo modo que os intérpretes contam suas histórias: natural e organicamente. A trajetória de cada um, em crescentes que por vezes acabam quase descontroladas e foras de si, é construída de maneira que a articulação frequente entre imersão na ilusão e percepção da teatralidade da obra não abale sua potência.

Curioso, ainda, notar o engajamento da plateia, principalmente quando no escuro, na oração final. Um verso desta ecoa e chama atenção; parece ser esse, de algum modo, uma conclusão possível. Para livrar-nos de nossos afetos, devemos suplicar: “livrai-me de mim”.