reflexões, teatro

um concerto para plantas criadas em estufa é triste

[uma escrita sobre o que se pode pensar frente ao que acontece; sobre o que se escreve e o que não se escreve.]

O afeto que nos une agora é o desamparo

A antropóloga Débora Diniz disse esta frase em uma entrevista em abril; ela é recorrente em minhas reflexões deste período de pandemia. Percebo, dentre os meus, um nível médio de privilégio, que faz com que a vasta maioria de minhas redes sociais – que efetivaram-se, definitivamente, como central meio de comunicação e relações interpessoais – esteja mantendo-se em isolamento. É aterrador pensar no quanto estou mais protegido do que a maior parte da população de minha cidade, de meu estado, de meu país. Evidente que isso não ocorre apenas neste contexto.

Ainda assim, insisto em fazer o recorte e olhar para ele por alguns instantes. Escrevi, há pouco mais de um mês, um primeiro texto tentando organizar reflexões sobre a “cena teatral” (uso as aspas, inclusive, para furtar-me do debate se tais manifestações são ou não teatro) destes tempos que nos cabe viver. Por momentos parece que a vida se colocou em suspenso; mas o mundo segue seu inevitável movimento. Os dias correm, as estações mudam e a realidade segue passando como um rolo compressor sobre tantas existências marginalizadas e oprimidas.

Há cerca de dez dias, escrevi uma crítica sobre uma obra que se classificava como uma peça de quarentena. Neste período, cheguei a acompanhar mais alguns experimentos de coletivos diversos, já conhecidos por mim ou não. Também não acompanhei outros que já estão em cartaz. Pretendo fazê-lo, compreendendo o meu tempo.

Pois é disso que talvez este texto – não uma crítica, nem mesmo uma reflexão muito elaborada – trate. Dos tempos das coisas, das pessoas, dos mundos. Do que é da natureza e daquilo que não é. “O melão-de-são-caetano continua crescendo aqui do lado de casa”. A frase de Ailton Krenak é boa para nos lembrar que não apenas o nosso conceito de humanidade é excludente como ele também, quase que paradoxalmente, se acha ainda maior do que é.

Então vejo notícias sobre o Concerto para o Bioceno. A foto de uma casa de ópera na Espanha com os assentos tomados por plantas me entristece profundamente. Lembro-me de um vídeo que viralizou nas minhas redes há algum tempo, de uma mulher dançando em uma praça vazia na Itália.

Para mim, esses dois acontecimentos reverberam como um choque de forças. De um lado, a reflexão de que “a natureza avança para ocupar os espaços que cedemos”. Do outro, uma resistência insistente: mesmo que não seja uma dança de exorcismo como foi noticiado, há uma potência e uma afirmação ali, naquela solidão que pulsa em dança.

A natureza, hoje mais sufocada do que nunca, sempre foi – e segue – encontrando seus meios. Uma parte da humanidade sistematicamente sufoca outra parte dela – e infelizmente ambas seguem encontrando seus meios. No início da pandemia, alguns filósofos chegaram a apontar para a possibilidade da ruptura do capitalismo frente à esta crise. Filas em lojas e shoppings lotados vêm mostrando o contrário.

Não pretendo aqui conjecturar o que será a pós-pandemia para o teatro. Até porque para isso, seria necessário definir qual o marco de seu fim. O Berliner Ensemble removeu cadeiras da plateia. Na música, o Flaming Lips fez um experimento com artistas e público dentro de bolhas em um programa de televisão.

Papa Francisco na Praça de São Pedro
em 27/03, Papa Francisco concede a bênção Urbi et Orbi em uma Praça de São Pedro vazia. foto: VaticanNews

Tudo isso é triste. É triste como encher um teatro de mais de dois mil lugares com plantas criadas em estufas para falar da natureza. E é triste porque por mais geniais e inventivas sejam as soluções propostas e criações em diálogo com estes tempos elas são soluções propostas e criações em diálogo com tempos tristes. Que lidam com o desamparo em oposição ao convívio.

podem me dizer: mas e quando os tempos não foram tristes? 
e eu não sei responder
a minha escrita é também triste para esses tempos; 
não é necessariamente triste o poeta, mas sua poesia sim

A arte responde; a arte provoca: sempre foi assim e não vejo no horizonte que assim deixará de ser. Editais minguam e a profissão é desvalorizada paradoxalmente no momento de um consumo massivo de produtos culturais. Arte, cultura e entretenimento misturam-se nestes tempos fluidos, meméticos e virais (com o perdão do trocadilho).

Pois sim, o alcance de obras online é obviamente imenso, ainda mais se comparado com a realidade da cena teatral independente e seus espaços pequenos e – mais ou menos – aconchegantes. Que me perdoem os otimistas que percebem nisso um trunfo para o futuro, mas não é porque alguém acessou um streaming no YouTube na sala de casa que esta pessoa será público de teatro no indefinido pós-pandemia.

Questiono-me – agora sem me furtar – se está havendo mesmo uma formação de público de teatro neste período. A louvável horizontalidade das redes, que faz cair por terra a velha ideia de que alguém precisa dar voz para o outro falar, faz pensar quem é que podendo falar cala para ouvir.

Há um tempo outro na fruição artística. Sim, há obras interativas em várias linguagens, mas não é disso que falo. Me refiro à obrigatória interatividade que o tempo das redes nos impõem. Os chats, os murais, as timelines. 

eu resolvo escrever agora por querer dar-me o tempo para que dentre estes tantos de tudo, algo me atravesse. um belo que machuca, pois triste.

É tudo um excesso. Marcadamente o excesso dos desejos de consumo, do que é que se consome – e o que, afinal, não é consumo; como diferenciá-lo do desejo? eu não sei. O excesso de um capitalismo muito mais veloz que nossas mentes, dedos e corações. A velocidade assusta muito mais do que a virtualidade. Pois ainda há espaço para os afetos. E nem todos se escancaram assim, como um algo feito nas pressas porque precisa ser feito.

Este texto foi escrito nas pressas, talvez porque precisasse ser feito.

eu tenho medo de ‘ter que’ qualquer coisa. ainda mais se pensando na dimensão humana dos amores e das criações, das alegrias e tristezas, prazeres e angústias.

escrevo para dizer que