arquipélago, performance

nada se quebra enquanto tudo é moldado

relato crítico a partir da experiência de “Tudo ou Nada”, performance de Renan Marcondes. este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

quando chego na varanda do Sesc Paulista, tudo é ilegível no bloco de gelo; nada se percebe como quase rascunho. “tudo ou nada” (e só aqui vou usar aspas nessas palavras ao longo de todo o texto), performance de Renan Marcondes (com Carolina Callegaro e Raul Rachou em ação, objetos por Zang, manutenção e montagem por Matias Arce, produção de Tetembua Dandara e fotos de Mari Chama), se enquadra dentro de uma ideia de arte conceitual – onde talvez o público passando só possa (será que “possa” é a palavra certa?) fruir sua totalidade (será que é possível fruir a totalidade de uma obra?) ao ler o texto, também de Marcondes, colocado entre os performers.

também é um trabalho onde a materialidade bruta ganha o centro; Rachou e Callegaro movimentam-se, não em partituras corporais, de modo que o foco está precisamente nos blocos de gelo e nos vasos-receptáculos de palavras invertidas. ao mesmo tempo, a presença de ambos sem dúvida age sobre o caminho da obra.

Rachou e Callegaro, respectivamente com nada e tudo na mão, dão aos derreteres distintas camadas de significação. nada se quebra enquanto tudo é moldado. nada não preenche tudo; tudo transborda nada. nada é caos, tudo é controle. tudo se derrete nos contornos de nada; nada se espalha pelo piso.

‘ou tudo ou nada’, diz a expressão de uso corrente. aqui, tudo e nada. não o momento da decisão, mas infinitas pequenas decisões entre um início estabelecido e o final obviamente esperado. no derreter, os caminhos.



enquanto assistia, pensei em um texto de Denise Ferreira da Silva, analisando “à luz negra” uma obra de artes visuais. ali ela lançava o olhar para a “matéria bruta” do trabalho, retraçando “o que” ele é a partir de deslocamentos históricos e geográficos de sua materialidade. não saberia fazer isso para pensar em torno de “tudo ou nada”.

“Aquilo que a luz negra proporciona, o que ela oferece à tarefa de refletir sobre o mundo e de des-pensá-lo [unthinking] é a possibilidade de considerar o pensamento por outro viés: e se o que interessa no trabalho de arte ultrapassa a representação não por conta de seu “por quê”, ou de seu “quando” ou de seu “onde”, mas em razão de seu “como” e seu “o quê”?” (Denise Ferreira da Silva – Em estado bruto [In the raw])

poucos minutos antes de começar a escrever, repassando mentalmente ideias e sensações, esse trajeto de “fazer brilhar” o material bruto proposto por DFS – que opera sobretudo na realidade – acabou por me lançar à ficção. em “Cem Anos de Solidão”, García Márquez escreve que “muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”.

trazido à Macondo pela caravana do velho Melquíades, havia algo – aliás, havia muito – de mágico naquele objeto que queimava as mãos da criança, ainda que gelado à primeira vista. tudo e nada são fascinantes, também.

os sentidos e as reflexões; suas provocações estão em todo lugar e em lugar nenhum. “tudo ou nada”, naquela varanda do Sesc, é gatilho e hiato de teatralidades nas passagens que habitam o espaço da performance e que invadem como ruído olhos ouvidos e imaginação do público.

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