teatro

das vidas que pulsam não se pode interromper o fluxo

crítica de “Transamazônica”, com dramaturgia e direção de Rudinei Borges dos Santos.
[texto escrito para o programa I N T E R L O C U Ç Õ E S, a convite da produção do projeto Transamazônica — inventário dos camponeses da floresta. publicado originalmente na Alzira re(vista)]

A estrada inacabada cruza e margeia rios. Intransitável nos meses de chuva, não pavimentada e sem manutenção. Ao seu redor, vidas pulsam. A floresta — ainda que desmatada — e seus macacos com o sangue vermelho como o nosso. E as águas que não cessam de correr por um só instante. O fluxo dos rios é imparável; ou ao menos deveria ser.

Quase uma linha reta da região metropolitana de João Pessoa, bem pertinho do oceano, até os meandros amazônicos de Lábrea, pequena cidade do estado que leva o nome da floresta. São 4.260km de BR-230. A Rodovia Transamazônica. Um dos projetos faraônicos do então presidente-general Médici — cujo nome até hoje batiza uma cidade no trajeto — que não se trataria apenas de uma estrada.

A história de Rudinei Borges dos Santos, dramaturgo e diretor de Transamazônica, se entremeia com a da rodovia. Sua cidade natal, Itaituba (PA) é cortada pela BR-230. Sua poesia, no entanto, parece reverberar o fluxo do Rio Tapajós, margeado pela cidade. Na construção da obra, ao se ver impedido de efetivamente seguir o curso da estrada, reinventa suas próprias origens.

Transamazônica
Leandro Lago em “Transamazônica” / foto: Gal Oppido

Sob a bandeira do progresso e da integração nacional, quantos não se engajaram na construção do que viria a se tornar o marco de um enorme fracasso? E quantos ali, às margens, não padeceram? Com a premissa de levar “homens sem terra para uma terra sem homens”, o Plano de Integração Nacional (PIN) almejava colonizar a Amazônia. Entregou à ela desmatamento e o genocídio de seus caboclos.

Nas beiras de uma rodovia abandonada e esquecida pelo poder público há muitas vidas a serem lembradas. E no peito do poeta o coração nunca deixa para trás suas raízes. Frente à impossibilidade de levar adiante seu processo imersivo, Borges nos entrega uma “peça interrompida”, como assume.

E o que pode emergir à cena desta viagem descontinuada? Talvez o próprio inacabamento se torne a processualidade que sustenta uma estética fragmentada. Impedido pela violência explícita e velada de olhar nos olhos daqueles que habitam estes espaços entre a infindável mata e a deserta estrada, Borges busca versar sobre estes fluxos possíveis de existir frente ao que é interrompido. Sua narrativa flerta constantemente com o lirismo. A crueza da encenação é friccionada pela construção poético-imagética presente no texto.

Corroborando a potência sensorial da dramaturgia está a música em cena de Juh Vieira. Multi-instrumentista e presença carismática no canto do espaço cênico, Vieira toca e canta as atmosferas, conduzindo habilmente intensidades e tonalidades de cada momento. Já a cenografia de Telumi Hellen ressoa a terra que cobre grande parte da estrada. Um grande rastro vermelho parece remeter ao sangue que cobre outra boa parte dela.

Juh Vieira
Juh Vieira em “Transamazônica” / foto: Gal Oppido

Leandro Lago e Geraldo Fernandes alternam-se na figura de narradores e protagonistas das cenas. A obra se organiza em prólogo, cinco capítulos e epílogo. São fragmentos entre caboclos e colonos; imagens fotografadas, relações cotidianas e um fértil imaginário amazônida. Elemento comum aos sete quadros é a violência.

Mesmo quando não evidente, ela está lá. Pairando nas memórias, nos diálogos; enfim — a vida se torna sobrevivência em estado bruto quando o abandono é muito. Aos poucos, parece que estamos seguindo o rumo da BR-230 floresta adentro. Uma peça-viagem. E assim como quando percorremos um trajeto muito longo alguns elementos da paisagem começam a parecer se repetir, aqui as narrativas passam a sugerir que são menos estrada em linha reta e mais rios, afluentes e igarapés que se trançam.

Para além de qualquer bandeira desenvolvimentista, o fracasso de um projeto deixa não apenas uma marca visível no mapa — com começo, meio e fim — mas também incontáveis tramas complexas e inacabadas. Transamazônica, o espetáculo, retrata o legado de Transamazônica, a rodovia. Não se trata, porém, dos números — seja a quilometragem, sejam os mortos em massacres — mas do que não pode ser quantificado. Das cicatrizes de fora e das de dentro.

Leandro Lago em “Transamazônica” / foto: Gal Oppido

Talvez pela frustração do poeta que não pode (re)conhecer a fundo os caminhos e descaminhos de sua gente é que tenha nascido essa pequena colcha de retalhos. O resultado ainda reverbera sutilmente sua intenção primeira. O assassinato de Dorothy Mae Stang é referenciado pelo acalorado diálogo dos dois pistoleiros numa madrugada em Anapu (PA), onde o crime ocorreu.

No capítulo em questão, o momento de ritmo mais intenso do espetáculo. Numa confusão entre a embriaguez e a dissociação da própria individualidade, os personagens parecem presos a um violento vórtice que, de alguma maneira, reverbera as demais situações apresentadas.

Dentre as muitas existências, Transamazônica transita pelo cotidiano e o mítico do imaginário de Borges e suas memórias amazônidas. Resgatadas ou reinventadas, deslocam o público para um outro lugar, entre a violenta aridez e a possível — e sofrida — poesia da vida.

No prólogo e no epílogo, as fotografias narradas não são mostradas. E não há garantia de que existam — pouco importa o documento concreto. O processo interrompido, a vida sempre feita em seu inacabamento. Caminhamos juntos da observação do narrador de “destroços de si e do tempo” até sua descrição da “família pobre diante do caixão com flores”. O território recriado se estabelece.

Do tanto que era comum que por pouco se vivesse e por menos se morresse, no entanto, não somos largados apenas com o retrato da dor deste longo risco traçado Brasil adentro. De algum modo, em meio à tanta tristeza, se todo um universo verdadeiro e imaginado pode vir à tona, cabe sempre a possibilidade de um novo (re)nascimento.

Transamazônica
“Transamazônica” / foto: Gal Oppido