deformasonhos
crítica de Terror Noturno, de Preto Vidal. o ruína acesa faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
“Se o sonho é a resistência ao pesadelo do ocidente / Que pesadelo aterroriza o corpo colonizado?” (trecho de Terror Noturno)
No espaço cênico ainda vazio, onde se veem cortinas esvoaçantes, quase transparentes, recortadas, que não tocam o chão, moving lights mapeiam a plateia, colocando cada pessoa do público no foco, como se luzes da polícia em busca de alguém em fuga. Depois, escuridão. Sons viscerais, grunhidos animalescos, começam a ecoar pela sala. Percebe-se uma presença em movimento. Uma atmosfera de medo e expectativa se instaura. Uma batida forte no metal da arquibancada; sustos, risos de nervoso. Se escutam os passos de alguém. Preto Vidal se revela, iluminado por uma lanterna, quase o clichê do como se conta uma história de fantasmas à beira de uma fogueira. Ele não diz nada. Se vê, parte a parte. Assim começa Terror Noturno, com dramaturgia, direção e atuação de Vidal.
Ao pesquisar por terror noturno, a maior parte dos resultados em buscadores aponta para uma condição ligada à infância; “porque nessa fase a regulação do sono para a vigília ainda está amadurecendo, ou seja, o cérebro ainda permanece em atividade enquanto dorme.” (Portal Drauzio Varella). A parassonia se distingue de pesadelos, entre outros motivos, pelo momento do sono em que ocorre: o terror noturno está associado ao sono sem o movimento rápido dos olhos (não-REM), em seu estágio 3, quando dormimos pesado – mais profundo que o REM, onde os pesadelos acontecem.
“Enquanto que no pesadelo a criança desperta do sono e se desespera com o ocorrido, no terror noturno a criança ainda está dormindo. Geralmente se mantém de olhos fechados, mas há muitos casos em que estes permanecem abertos como que em um transe. É como se a criança estivesse no “limbo” entre o dormir e o acordar.” (Instituto Pensi)
O Terror Noturno de Preto Vidal, um adulto, um adulto negro, faz do teatro a tentativa de habitar esse limbo entre o dormir e o acordar. É uma das raras apostas no gênero do terror nas artes da cena; não enquanto proposição de discuti-lo, mas efetivamente uma busca pela construção estética de sua atmosfera. De algum modo, também compreende suas limitações, operacionalizando certos clichês e tensionando referências na direção da construção de um discurso que localiza – e racializa – o espaço do pesadelo. Crianças despertam de seus terrores noturnos sem memória do pavor vivido; o público testemunha Vidal oscilando entre transe e consciência, vívido nas espirais do horror.
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Ser, fazer e desfazer-se monstro: assustador, patético, algoz, vítima. Terror Noturno passa pela Rainha Má da Branca de Neve, pela Noite dos Mortos Vivos de George Romero, por Corra! de Jordan Peele, por minstrel shows e fotografias antigas. O videografismo (cuja autoria não está referenciada diretamente na ficha técnica) sampleia décadas e séculos na construção imagética que dá a ver diretamente o discurso crítico de Terror Noturno, ao passo que sua montagem fragmentada organiza-se no fluxo de pesadelos; glitchs, deformações, deformasonhos.
Vidal com um pijama infantil e uma marreta rudimentar na mão. Uma voz de fora, uma avó, algo que imbrica ancestralidade e memória, gravada pela própria voz do artista, numa relação que ressoa, de forma torta, distorcida, a de Norman Bates com sua mãe em Psicose, de Alfred Hitchcock. Referências intencionais ou incidentais, Terror Noturno navega sem medo pelo universo do medo. A máscara utilizada pelo intérprete talvez pareça à primeira vista a de Ghostface, assassino(s) da série Pânico. Quando a projeção traz uma cena da Rainha Má em Branca de Neve, uma frase chama a atenção; em sua evocação, diz: “Escravo do espelho mágico, deixa o infinito espaço, e vem para as trevas, eu te convoco, vai, deixa-me ver tua face”. A face é a máscara. Um trecho do texto projetado em certo momento da encenação afirma que a figura diante do público é “o espelho quebrado do mundo”. Liberto. Quebrar o espelho, deixar as trevas, ser as trevas, ser o terror. Uma voz em off parafraseia Sexto Sentido, de M. Night Shyamalan: essa personagem, aliás, essa imagem, esse desconhecido, não vê gente morta; vê gente branca. A branquitude como pesadelo, como o que perturba o sono.
A face que é a máscara é também uma whiteface, um revide. É algo de Teddy Perkins, de Donald Glover, de um episódio do seriado Atlanta; inquietante, perturbadora. Ao mesmo tempo, algo do que atravessa e permeia a cena traz consigo lapsos do real, as fotografias antigas, as relações familiares. Há um certo grau de inapreensível dos sentidos daquela totalidade estruturada como tormento. Terror Noturno se constrói com poucas palavras; se lêem nas cortinas, escutam-se dos samples projetados, ouvem-se em off. A relação primeira de Vidal é com a expressividade do corpo (Castilho assina direção de movimento), acompanhada da trilha sonora (DJ Akinn e Humberto Vicente) que bebe no horror, no noise, nos ruídos e da iluminação de Matheus Brant, por vezes protagonista da cena, sendo ela em si movimento e discurso.
Da presença invisível e assustadora, animalesca, passando pela criança que brinca de ameaçar ao assassino que carrega um corpo, Vidal presentifica aparições, fantasmagorias, seres humanos e não-humanos em suas coreografias do pavor. De gestualidades representativas à corpos distorcidos, formando-se e deformando-se; da vigília ao transe, fazendo-se monstro e bailarina aprisionada numa caixinha de música assombrada, escravo do espelho e espelho quebrado. Situando-se em um lugar estranho entre dança, teatro e performance, Terror Noturno e seu horror atmosférico busca aproximar do público o medo introjetado em subjetividades subalternizadas, colonizadas, capturadas desde seu inconsciente pelos terrores – diuturnos – do viver em uma sociedade racista.
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ficha técnica
TERROR NOTURNO
Dramaturgia, direção e atuação: Preto Vidal
Direção de movimento: Castilho
Desenho de luz: Matheus Brant
Cenografia: Meia
Trilhas: DJ AKinn e Humberto Vicente
Produção: Ana Sem Sobrenome e Corpo Rastreado