sonhos que nos habitam; sonhos que nós habitamos
crítica de “Os Sonhos de Helena”, dramaturgia de Mariana Marinho e direção de Paulo Arcuri
A partir do “Livro dos Abraços”, de Eduardo Galeano, “Os sonhos de Helenas” propõe um teatro onde o encontro e a partilha é central. A obra leva o universo do realismo fantástico para dentro de casas e apartamentos, onde os que lá moram e que por lá passam são convidados à encarar com naturalidade a visita de sonhos.
Pela própria natureza da experiência cênica, me parece inevitável não personalizar este texto. Recebemos o espetáculo, eu e minha mãe, no apartamento onde moramos juntos há cerca de doze anos. Quando viemos para cá, eu ainda estava no colégio e minha mãe em seu emprego anterior. Aqui, muito aconteceu; em nós e no próprio espaço.
O interfone toca. Minha mãe atende. “Chegamos!”, elas exclamam. Desde a chegada até a despedida, Maria Alves e Thai Leão são Helena e Helena. A partir desta convenção, estabelecida em relação, constrói-se um ambiente onírico. É uma atmosfera que permanece no apartamento mesmo depois da partida delas, ao final do espetáculo. Como se a casa passasse a ser – e ser vista como – um lar de (novos) sonhos que passam a lá habitar.
A dramaturgia de Mariana Marinho opera ao mesmo tempo como espinha dorsal da narrativa fantástica e como dispositivo para as atrizes – em acertada direção de Paulo Arcuri, onde sorrisos e espanto não faltam em seus rostos. Entre chás e álbuns de fotografias, Alves e Leão permanecem atentas e com a escuta aberta para o espaço e o público a fim de proporcionar uma construção conjunta no encontro dos sonhos de Helenas com os dos espectadores e também os da própria casa.
Nesse sentido, curioso perceber os muitos tempos possíveis da proposta. Passado, presente e futuro dão morada para distintos sonhos. Minha mãe, em meio à conversa, parece ter inventado uma memória de minha pré-adolescência. E, talvez, todo resgate de memória seja um ato de invenção, mesmo. Para além do olhar para trás, também projeções do que virá: doces de diferentes cores em um baleiro são convites para sentir o gosto de sonhos futuros.
Assim, para além dos disparadores que geram a cumplicidade necessária para o compartilhamento de memórias e anseios, há também delicadas pérolas metafóricas e imagéticas. As fotos apresentadas – e a registrada, junto com o público – buscam despertar novas formas de olhar para a memória. Tão acostumados ao visual, somos convidados à pensar em sorrisos que não vemos; em cheiros e gostos de sonhos. Ainda, a imagem construída no boxe do banheiro – e que, particularmente em minha experiência, encontrou diálogo direto com lembranças materiais do apartamento – encanta pela simplicidade e inventividade.
O encantamento de “Os sonhos de Helena” se dá na aceitação do universo onírico – de infinitos possíveis – em fricção com um espaço concreto e o tempo presente. No meio da encenação, já imerso e envolvido pela obra, lembrei-me de algo que minha mãe me deu de aniversário. Ao fazer 21 anos – salve engano! – ela presenteou-me com um “vale-sonho”. Até hoje não o utilizei. Ouvindo esse relato, as Helenas pediram para eu compartilhar o vale com elas naquele momento. E um “vale-sonho” que se compartilha não diminui, se multiplica.
A frase dita à Amélie Poulain – que me perdoem o clichê – inevitavelmente reverbera neste momento. São, sim, tempos difíceis para os sonhadores. E, exatamente por isso, que cada vez mais os sonhos sejam belos, doces, de sons de chuva e cheiros de sobremesa. Ouvir, lembrar, contar, reinventar: são muitos os verbos com os quais se conjugam sonhos. E eles nos visitam o tempo todo. Aqui, o espaço da casa passa a ser a matéria que ancora sonhos.