arquipélago, dança, destaque, performance

construir e destruir um chão para imagens inoperativas

crítica de Reconhecer e Perseguir, da Pérfida Iguana. o ruína acesa faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Dentre as quarenta e quatro referências citadas no programa de Reconhecer e Perseguir, da Pérfida Iguana, sob o título de “conversam conosco na performance”, o primeiro é o documentário de Harun Farocki que inspira o título do trabalho. Em Erkennen und Verfolgen (2003), o cineasta alemão reflete em torno das câmeras embutidas em mísseis e outros armamentos e suas imagens operativas de guerra, observando que a “era eletrônica criou os mísseis de destruição em massa, mas foi a linha de montagem do fordismo que deu a forma fabril, serial, automatizada aos mísseis”, conforme afirma Ednei de Genaro em Imagens Operativas e Pós-fotográficas:Um estudo a partir de Harun Farocki.

O pesquisador aponta “duas  características  centrais  das  imagens  operativas:  manter-se  à  distância;  imitar-suplantar  o  olho  humano.”, abordando também a utilização de equipamentos tecnológicos em contextos civis. Pensando no tecnicismo deste e do último século, de algum modo, há um eco torto de A obra de arte em sua reprodutibilidade técnica, de Walter Benjamin, nesta busca pelo paralelo sugerido pelo título da performance da Pérfida Iguana e o filme de Hanocki: em uma das poucas citações ao teatro em seu ensaio, Benjamin afirma que “não há, de fato, um oposto mais absoluto para a obra de arte totalmente absorvida pela reprodução técnica, uma obra que surge dessa reprodução mesma – como é o caso do filme – do que a arte cênica”. Enquanto a arqueologia do cineasta alemão debruça-se sobre a ascensão de câmeras automatizadas para propósitos específicos a ação neste Reconhecer e Perseguir parece atrelar-se a uma historiografia dançada (e sutilmente narrada) da dança.



É, de algum modo, uma relação talvez paradoxal, talvez dialética: Se Genaro diz que a discussão de Hanocki se debruça nas “imagens subtraídas a um operativismo em si mesmas, dispensando ou eliminando qualquer elo que ativa um sentido de transindividuação com outras”, aqui, os elos parecem mais ligados à ideia de inoperatividade de Giorgio Agamben: o filósofo italiano aponta que a operação linguística da poesia “consiste em tornar a língua inoperativa”, ou seja, “desativar as suas funções comunicativas e informativas” para “abrir a um novo possível uso”. Deste modo, ainda segundo Agamben, “o sujeito poético não é o indivíduo que escreveu os poemas, mas o sujeito que se produz na altura em que a língua foi tornada inoperativa, e passou a ser, nele e para ele, puramente dizível” (em Crítica ao Contemporâneo).

Os deslocamentos produzidos continuamente por Reconhecer e Perseguir dão a ver um lugar de danças de trabalho de dança. Dentre as conversas citadas, manifestações culturais ligadas a esse contexto se fazem presentes, mais enquanto inspiração do que emulação – no sentido que, talvez até operativamente, a dança que se vê em cena refere-se em alguns momentos ao próprio trabalho de dança. Na sinopse da Pérfida Iguana, “havia um grupo de pessoas que tentava criar, repetidamente, um chão para dançar. Para produzi-lo, lançavam mão de fragmentos de uma história, que podia ser da dança ou não”. Dança, trabalho, ritual, vida: o texto falado desde o início da performance é compreendido dentro de certas limitações dos ruídos provocados pela quebra de expectativas nas formulações das perguntas e também em seus absurdos. O que se vê em ação, neste fazer-refazer o chão, parecem movimentos oriundos de linguagens e partículas coreográficas reconhecíveis, mas tornadas inoperativas e empilhando novos sentidos para cada leitor, que fará das passagens de Reconhecer e Perseguir mais ou menos dizíveis.

Nas repetições, refações e recaminhos da Pérfida Iguana, cada novo chão que se constrói e destrói sugere um retorno a um início, mas o zero nunca é um zero. Histórias da dança ou não em seus fragmentos são citados, cabendo a cada pessoa espectadora a possibilidade de referenciação direta ou não – a depender de quem conhece Peter Brook ou Pina Bausch, por exemplo, para ficar em alguns nomes (não-)evocados. A constituição de Reconhecer e Perseguir, no entanto, não depende desta sobreposição direta entre narrativa e ação. O que se escuta e o que se vê são caminhos paralelos que se cruzam por vezes de forma dissonante no tempo.

A obra anterior da Pérfida Iguana, Fantasias Brasileiras (2024), é totalmente propositiva em formas de produzir inteligibilidade para todas as pessoas que por ventura parem para observar; crítica como performance, performance como crítica. Ali, o chão sobre o qual dançavam os performers era mais concreto e estabelecido: o Balé IV Centenário e seus programas inaugurais. Literalmente, o tapete sobre o qual o trabalho era realizado trazia consigo a contextualização histórica da pesquisa e as intenções da obra, sendo apresentado como um grande cartaz para o público no início das apresentações. O palco era o primeiro de muitos cadáveres sendo exumados. Em Reconhecer e Perseguir segue existindo um grau de mediação nas falas que localizam eventos e perspectivas em torno da dança que, mesmo com muito menos didatismo do que em Fantasias Brasileiras, dissipa um possível hermetismo. Aqui, porém, os chãos a se pisar são mais incertos. 

Amplificando o escopo dessas historiografias dançadas, a Pérfida Iguana faz do quadrado cênico delimitado pelas duas plateias frente a frente e pelas varas de luz no chão seu sítio arqueológico, entre a delicadeza do detalhe e a escavação profunda. Passos, memórias, sapatos: elementos que se tornam imagens cujos sentidos se transformam no tempo. Uma inoperatividade almejada no tanto que se desenha entre corpos e panos. O que é um chão? O que resta de incapturável?

O espaço de Reconhecer e Perseguir é um vazio que se faz e desfaz; os corpos de Carolina Callegaro, Raul Rachou e Renan Marcondes (performers e diretores) o ocupam, semeiam, constroem, destroem (depois, também Marilene Grama, performer convidada dança). Transformam o chão com o uso de longos panos enrolados, desenrolados, empilhados, derrubados. Transformam-se revelando novos figurinos (também de Marcondes), vestindo calçados de dança, enterrados entre os panos; enterram partes de roupas e Rachou nestes chãos também. As músicas originais com composição e voz de Paula Mirhan e letra de Artur Kon (ele, também dramaturgista ao lado de Clarissa Sacchelli) vem de fora, como a trilha original de Peri Pane e Otávio Ortega, “respondendo” algumas das perguntas feitas no início, mas também há uma cantada pelo elenco: “aqui é o fim do mundo, aqui é o fim”, quase como um mantra. O desenho de luz de Laura Salerno e Marcus Garcia é transformado com gelatinas e movimentos de traquitanas executados pelos performers e pelo diretor técnico (e operador de som e luz) Matias Ivan Arce. 

E o que emerge de um chão que ainda não é? O que foi a dança, o que é a dança? Reconhecer e Perseguir brinca com os sentidos produzidos por histórias, especialmente quando deslocadas de seus contextos, embaralhadas e ressignificadas em seus tantos códigos. Conectando-se ao trabalho de Farocki, em cena está de fato a contínua capacidade humana de construir e destruir, olhando passado e presente; de algum modo se perguntando o que restará de futuro. Uma operação inoperativa: reconhecer trajetórias, resgatar insistências, reorganizar referências, perseguir permanências, criar chãos para velhas novas danças, existir nos tempos de um instante – desse instante.

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ficha técnica
RECONHECER E PERSEGUIR

Direção e performance: Carolina Callegaro, Raul Rachou e Renan Marcondes
Performer convidada: Marilene Grama
Texto, figurino e design gráfico: Renan Marcondes
Dramaturgistas: Artur Kon e Clarissa Sacchelli
Trilha original: Peri Pane e Otávio Ortega (gravado no estúdio 100 Grilos)
Músicas originais: composição e voz de Paula Mirhan e letra de Artur Kon
Desenho de luz: Laura Salerno e Marcus Garcia
Direção técnica e operação de som e luz: Matias Ivan Arce
Fotografias: Tetembua Dandara e Mariana Chama
Vídeo: BRUTA Flor Filmes
Assessoria de Imprensa: Pombo Correio
Produção executiva: Tati Mayumi
Direção de produção: Tetembua Dandara


serviço
RECONHECER E PERSEGUIR

Quando: De 18 a 21 de fevereiro, às 21h
Onde: Área de convivência do Sesc Pompeia (Rua Clélia, 93 - Água Branca)
Quanto: Gratuito
Classificação: Livre
Informações: (11) 3871-7700
Acessibilidade: espaço acessível a cadeirantes e pessoas com mobilidade reduzida