do permanente vai-e-vém das marés
crítica de “Quando Um Dia“, do Núcleo de Pesquisa Corpo Urgente, do grupo XIX de teatro, com direção de Juliana Sanches. este texto faz parte do projeto “5 x XIX“, contemplado pela 40ª Edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo – Secretaria Municipal de Cultura.
“Acabou tudo bem”, disse Roz a Lil. “É, imagino que sim”, disse Lil. “O que mais poderíamos esperar?” Elas estavam na praia, em suas velhas cadeiras, em frente à nova cerca. “Eu não esperava nada”, disse Lil. “Mas?” “Não esperava me sentir do jeito como me sinto”, disse Lil. “Eu me sinto...” “Certo”, disse Roz, rapidamente. “Mas deixa para lá. Eu sei. Mas olhe dessa forma, nós tivemos...” “O melhor”, disse Lil. “Agora todo aquele tempo me parece um sonho. Não acredito que tenha existido tamanha felicidade, Roz”, sussurrou ela, virando a cabeça e debruçando-se um pouco, embora não houvesse ninguém a menos de cinqüenta metros. “Eu sei”, disse Roz. “Bom — mas já foi.” E recostou-se de volta na cadeira, fechando os olhos. Sob os óculos escuros, as lágrimas escorriam. (trecho de As Avós, de Doris Lessing)
Uma mulher velha entra em cena. O armazém da Vila Operária Maria Zélia onde reside o grupo XIX de teatro desde 2004 é feito praia; enquanto uma música toca, ela pisa na areia, sorri, vê e mexe nos objetos espalhados pelo espaço. Isso já diz, antes das palavras. Três mulheres, de duas gerações diferentes, na cidade litorânea onde nunca deixaram de viver, são confrontadas e agraciadas com o tempo do antes, do agora, do que virá. Mães, avós, seres nostálgicos, seres desejantes. Quando Um Dia, do Núcleo de Pesquisa Corpo Urgente, é mais uma incursão de Juliana Sanches no universo das teatralidades, representações e questões do feminino – antecederam o presente trabalho, também dentro de projetos do XIX, processos como Legítima Defesa (2012), InCômodos (2017), A Corda, Alice (2019) e os virtuais A Crise do Discurso como Substantivo Masculino (2020/21) e O Tempo me Atravessando Dentro de Casa (2021).
Neste último, a questão da maturidade já era tateada na presença de uma maioria de atrizes com mais de 40 anos, sendo o elenco formado por quase 50% de mulheres acima dos 50. Agora, três avós são as personagens de Quando Um Dia; Doralice, a mais velha, é quem narra, logo no início, o fatídico dia que seria o último em que noras e netas veriam as avós, mais jovens e alegres que esta narradora. As Avós, aliás, é o nome da novela de Doris Lessing a partir da qual Sanches cria, com assessoria de Tatiana Ribeiro, a dramaturgia desta encenação. Na obra da vencedora do Nobel, também é este momento marcante que inicia a história; no entanto, não há Doralice – a personagem é criação da dramaturga – e a história, então, retrocede no tempo e seguirá a sequência cronológica até que, no final, reencontra-se com o começo.
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Quando Um Dia é uma adaptação a partir da situação e das personagens de Lessing, com Sanches fazendo das duas personagens (Lil e Roz são tornadas Diana e Guida) o ponto focal e criando uma espécie de “antagonista” que servirá como pivô de uma série de acontecimentos, entre o que não se diz em palavras e o que o corpo inevitavelmente revela. Na operação da dramaturga e diretora (com assistência de Carolina Catelan), a obra distancia-se do tempo real dos eventos e se torna eminentemente narrativa, tendo na própria espacialidade da cena um lugar para a ação dramática e outro para a fala direta ao público, entre comentários e resgates da memória.
O que se coloca em jogo, então, são os tempos que se vive na condição de ser-mulher. As expectativas, as aparências, os deveres e, sim, por favor, os desejos. Quando Um Dia versa sobre as levezas e ausências do (não) ser quem se é; enquanto Diana (Tásia d’Paula) e Guida (Evelyn Klein) são desde crianças vistas “‘como irmãs’, diziam as pessoas, e até mesmo: ‘Como gêmeas'” e seguiram juntas ao longo da vida, Doralice (Mara Helleno) parece não compreender aquela relação e aqueles destinos dentro de sua visão de mundo.
Neste sentido, a inserção deste terceiro vértice traz outros pontos que se desdobram para além dAs Avós: Doralice surge como anacrônica, e aos poucos é possível encará-la com sentimentos diversos a partir de seu arco dramático e sua lida com a normatividade, o passado, a nostalgia e o abandono. Neste permanente vai-e-vém das marés que conduz Quando Um Dia entre anos do passado, o agora representado e uma década no futuro, Diana, Guida e Doralice se descobrem e se fazem diante, a partir e apesar do Outro; encaram e navegam por processos de compreender e tomar para si o que é seu – em relação à, mas não dependente de. A que sente falta, as que se inventam.
Ao longo de Quando Um Dia, algo da relação entre Diana e Guida vai nas sutilezas se tornando quase que uma obviedade. Na adaptação de Sanches, ao reorganizar as temporalidades do que se vê e do que se conta, um desdobramento central da novela de Lessing emerge de um modo que até lembra um coup de théâtre, cobrindo como um tsunami o até então tranquilo horizonte de expectativas. Há na encenação, no momento de revelação do que talvez seja o grande mote do enredo, um forte impacto. Absorvido pelo público, dá lugar a uma bonita cena onde corpo e voz vibram junto na descrição do desejo, na possibilidade do desejo dessas mães, amigas, mulheres.
Quando Um Dia é relato contado e vivenciado à beira-mar, entre marcas e materialidades que permanecem e os rastros que diariamente desaparecem na areia entre idas e vindas de ondas, correntes e marés. É como este tapete de infinitas e minúsculas pedras banhadas pelo oceano e secas pelo sol: de longe, a vida de uma mulher pode parecer uma coisa só. De perto, cada história é uma e outra e no fundo é sempre tanto, tanto mais.
ficha técnica Quando Um Dia foto de capa: Jonatas Marques Direção e Dramaturgia: Juliana Sanches. Concepção: Juliana Sanches e Evelyn Klein. Diretora Assistente: Carolina Catelan. Atrizes-criadoras: Evelyn Klein, Mara Helleno e Tasia d’Paula. Produção e assistência de Cena: Agatha Selva. Assessoria dramatúrgica: Tatiana Ribeiro. Preparação corporal: Claudia de Souza. Música e colaboração de processo inicial: Gustavo Kurlat. Concepção cenário: Criação coletiva. Iluminação: Thiago Capella. Arte Chão/Cenário: Washti. Confecção de cortina: Dayse Neves. Produção figurinos: Juliana Sanches e Carolina Catelan. Concepção e produção objetos: Criação coletiva. Técnico geral: Luis Roberto de Oliveira. Direção de produção: Andrea Marques. Fotografia: Fernanda Hernandez. Designer gráfico: Jonatas Marques. Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli. Realização: Grupo XIX de Teatro, Núcleo Corpo Urgente e Lei de Fomento para a Cidade de São Paulo. Primeira Fase do Núcleo: Agatha Selva, Ana Beatriz Nery Ferreira, Anáthaly Kleina, Andrezza Czech, Angie Carvalheiro Rodrigues, Camila Nardoni de Oliveira, Carolina Catelan, Cléo Francisco, Evelyn Klein, Flora Sandyá, Gleice arruda, Grasielli Gontijo, Ingrid Sachs Kindi, Jamile Nascimento Assad, Juliana Iurk, Lidiane Fernandes de Araujo, Mara Helleno, Maria Claudia Mesquita, Priscilla Nina Fernandes, Rosana Bardini, Tásia de Paula, Teresa Cecília Ramos, Thaís Campos e Vanessa Tatiana Azeñas.