a comédia e a assepsia
crítica de Protocolo Volpone, um clássico em tempos pandêmicos, da Bendita Trupe.
[com a colaboração de Andréa Martinelli na edição]
O Teatro Arthur Azevedo, equipamento público municipal localizado no bairro da Mooca, preparava-se para retomar a programação de sua sala principal em março deste ano, após uma grande reforma. Mas o público teve pouco tempo para conhecer o novo espaço: no mesmo mês, a pandemia do novo coronavírus fechou teatros e outros espaços culturais. Agora, em outubro, a retomada: o estacionamento do teatro recebe uma estrutura especialmente concebida para uma apresentação teatral que respeita os protocolos sanitários – o que é realçado até no título de Protocolo Volpone.
A encenação pioneira da Bendita Trupe, idealizada e dirigida por Johana Albuquerque, almeja investigar as possibilidades de criação dentro das novas normas para as atividades culturais no estado de São Paulo – que recentemente entrou na chamada fase verde do processo de flexibilização (após mudança nos critérios de definição de tais estágios). O espaço cênico é uma arena delimitada pela plateia, composta de vinte cabines transparentes individuais; elenco e equipe carregam frascos de álcool, utilizados como sprays de limpeza, integrados ao figurino e usam máscaras de proteção.
A experiência carrega consigo um misto de sensações. Na chegada ao Arthur Azevedo, o público é recebido com a aferição de temperatura e se depara com o mobiliário do foyer respeitando o distanciamento. Há um ânimo de pensar que, após sete meses, espetáculos podem voltar a acontecer de forma presencial – ainda que muitos espaços pretendam manter a programação online ou ainda suspensa.
Por outro lado, a pandemia não acabou. Há muito a se elaborar sobre o aterrador número de vítimas da Covid-19 em nosso país. Mais de 150 mil mortos e o tanto de luto a se viver. A cidade não é a mesma, pois talvez a sociedade já não seja – ou não possa mais ser. São tempos tristes. Ir ao teatro carrega consigo essa contradição; um misto de prazer e dor.
É necessário falar desta realidade por um simples motivo: ela se impõe. Na investigação formal da Bendita Trupe, a pandemia é central – o que faz emergir questionamentos acerca do chamado novo normal (uma ideia também triste, onde se normaliza uma assepsia que parece depor contra o afeto em si). No conteúdo, o clássico Volpone, comédia do britânico Ben Jonson adaptada por Marcos Daud (a partir da versão do austríaco Stefan Zweig).
Na trama, figuras deploráveis de Veneza se reúnem em torno de um ardil sórdido. O personagem-título Volpone – literalmente, o raposa – finge estar à beira da morte para enganar seus colegas Voltore, Corbaccio e Corvino, abutres tão gananciosos como ele. Com a ajuda de seu criado, Mosca, cria artimanhas para ludibriá-los, partindo de uma disputa por sua herança – supostamente próxima de ser distribuída. O release do espetáculo traz citação do crítico Décio de Almeida Prado que nomeia Volpone como a comédia da morte.
A encenação de Protocolo Volpone sobrepõe a ganância dos milionários venezianos à dos nossos tempos, de modo que à doença do protagonista se soma a estética que propõe figurinos clássicos (de Silvana Marcondes) e dispositivos assépticos, como o álcool à tiracolo, as máscaras de proteção e a ausência de contato (por vezes desrespeitada) entre os intérpretes. Emerge na forma, então, a proposição de que é uma história da Veneza do século XVII, mas também do Brasil de 2020.
Em comum entre dramaturgia original e atualidade, as tantas pestes do caráter humano que vão muito além das doenças – e podem ser ainda piores do que elas. Volpone gira em torno de uma corrupção absoluta de valores éticos e morais na busca inescrupulosa por acumular riquezas.
Na dramaturgia deste Protocolo, o final de Daud segue a versão de Zweig; há uma espécie de grande pacto que resolve a situação para basicamente todos os envolvidos, à exceção do personagem-título. A adaptação não vai além da inserção de comentários pontuais que criam pontes diretas com a contemporaneidade. De certo modo, basta olhar para nosso noticiário político para perceber que não é necessário mais do que isso.
Os protocolos que ganham o título do espetáculo o estabelecem como um marco basilar neste atual contexto. É interessante observar não apenas quais as medidas tomadas, mas os modos de inseri-las dentro do acontecimento teatral – o que nem sempre se dá neste caso. É notável o empenho da Bendita Trupe na busca de soluções e propostas inovadoras, até pelo ineditismo do momento histórico, e isso deve ser louvado. No entanto, há muito a se pontuar.
O espaço construído (Julio Dojcsar assina a cenografia e os adereços) é visualmente impactante para o público em sua entrada. A estrutura permite a montagem da boa iluminação de Aline Santini enquanto também mantém o ar circulando, visto que segue sendo uma área aberta.
Há um prejuízo inevitável à recepção no isolamento do público, que é ampliado pelo uso do plástico, haja vista a perda de nitidez quando as cenas estão mais distantes. Ainda, pela disposição das cabines, há momentos onde só é possível enxergar vultos pela sobreposição dos plásticos. É diferente do que ocorre com materiais sólidos, como o acrílico, atualmente muito utilizado para garantir a separação de ambientes.
Na sonorização de Kako Guirardo, o uso de microfones por baixo das máscaras de proteção soluciona o que poderia ser um enorme problema. Aos poucos os espectadores se acostumam ao tom levemente abafado das vozes – porém, a canção inicial é de difícil apreensão. A somatória do uso de máscaras e dos plásticos, que mediam a relação entre obra e plateia, fazem com que o público quase não perceba as expressões faciais dos atores e atrizes – o que é resolvido em um bom trabalho corporal e vocal do elenco, com Maurício de Barros destacando-se como Mosca.
Protocolo Volpone também põe em cena membros da equipe criativa como anjos de proteção: além de agirem como contrarregras na movimentação de elementos cênicos, são guardiões dos protocolos, realizando a condução do público – com distanciamento – e a assepsia dos objetos utilizados em cena. Não é uma escolha por necessidade, visto que em certos momentos da apresentação a personagem de Barros realiza essa função de higienizar objetos antes de entregá-los a outro ator.
Há, talvez em caráter educativo, uma insistência em lançar luz aos tais protocolos, o que acaba servindo inclusive como recurso de distanciamento da encenação, visto que continuamente relembra aos espectadores da realidade para além da história sendo contada.
Ao mesmo tempo, existem cenas onde os protocolos são quebrados sem grande cerimônia – como quando Colomba segura o braço de Volpone, por exemplo. Tais questões não são problemáticas em si, mas tornam-se ruídos dentro do rigor asséptico de Protocolo Volpone. Ainda falta, nesse sentido, uma maior radicalidade da obra em seguir sua proposta. É compreensível, dado seu desenvolvimento pioneiro de linguagem.
Neste passo inicial na retomada do teatro enquanto evento público, coletivo e presencial, pode-se perceber um certo descompasso entre forma e conteúdo na encenação. O subtítulo do projeto é um clássico em tempos pandêmicos. A investigação da Bendita Trupe das possibilidades de construir uma encenação neste novo normal parece distanciada da comédia clássica. São tempos difíceis para fazer rir; no isolamento do público, a atmosfera parece tão fria quanto o vento do anoitecer. Volpone é a comédia da morte, e talvez não seja o momento mais propício para rir dela.
Não assisti ao espetáculo, mas lendo sua reflexão crítica tenho vontade de ver. Mesmo com o ” vento do anoitecer ” trazendo lembranças de mortes. Das mais de 150.000 mortes. Obrigada pelo texto: claro e lúcido