orgulho, teatro

de onde se fala, de onde se vê

crítica de “Plantar cavalos para colher sementes”, dirigido por Ronaldo Serruya

foto de Leonardo Waintrub

“(…)
Não sou uma bicha fantasiada de poeta
Não preciso de fantasia
Aqui está a minha cara
Falo pela minha diferença
Defendo o que sou
E não sou tão estranho
Me aborrece a injustiça
E suspeito desta lenga-lenga democrática
(…)”
[trecho do manifesto ‘Falo por minha diferença’, do chileno Pedro Lemebel]


Desde 2004 instalados na Vila Maria Zélia, o Grupo XIX de Teatro vem proporcionando, a cada ano, uma série de Núcleos de Pesquisa em sua sede. Capitaneados pelos diversos artistas componentes do grupo, tais núcleos tem proposições e temáticas extremamente variadas. Nos últimos tempos, não é incomum que trabalhos construídos dentro das pesquisas resultem em obras que acabam ganhando temporadas profissionais.

É o caso de “Plantar cavalos para colher sementes”. Dirigido por Ronaldo Serruya (ator do XIX e fundador do Teatro Kunyn), o espetáculo performático nasce do núcleo de pesquisa “Falo por minha diferença”, realizado em 2017. A inspiração da pesquisa que resultou na peça é o manifesto de mesmo nome do ativista chileno Pedro Lemebel.

Em forma de poesia, Lemebel grita pela sobrevivência a partir de seu lugar de fala. Lido como intervenção em um ato político da esquerda chilena realizado em 1986, em memória ao golpe militar que derrubou Salvador Allende treze anos antes, aponta não apenas para as opressões estabelecidas naquela – e em nossa – sociedade, mas também para utopias revolucionárias: “Há tantas crianças que nascerão / com uma asinha quebrada / E eu quero que elas voem, companheiro / Que sua revolução / Lhes dê um pedaço de céu vermelho / Para que possam voar.”

A orientação de Serruya para as pessoas que fizeram parte da pesquisa e atuam/performam em “Plantar cavalos” parece ter sido buscar, dentro da lógica presente no manifesto do chileno, qual a diferença individual de cada um que fala tão alto. Assim, inserindo-se profundamente nos debates contemporâneos acerca dos lugares de fala – que atingiram, recentemente, e seguem reverberando cada vez mais, o campo da representação – a obra resultante se afirma, no texto do programa, “mais ato que espetáculo”; “uma peça-manifesto para pensar o mundo”.

Estruturada em um prólogo coletivo seguido de dezesseis manifestos individuais, é na performatividade de corpos e suas dissidências da norma – seja na questão racial, de gênero, orientação sexual, religiosa, comportamental ou na intersecção desses indicadores da diferença – que “Plantar cavalos para colher sementes” se consolida esteticamente.

Para além dos lugares de onde se fala, a proposta da encenação também provoca o lugar de onde se vê. Se no prólogo há uma configuração frontal na relação entre elenco e público, logo na sequência uma coreografia anárquica e agressiva posiciona as cadeiras de maneira quase aleatória pelo espaço cênico. Caberá aos espectadores, então, reorganizar, literalmente, seu ponto de vista a cada movimentação – muitas vezes enérgica e expansiva – dos performers/manifestantes.

A proximidade daqueles que falam, gritam e/ou dançam e do público gera uma relação que oscila entre uma intimidade cúmplice e uma denúncia disparadora de reflexões. Cabe ressaltar que, no espetáculo como um todo, a recepção estética está invariavelmente ligada à diferença que compõe cada espectador. A identificação e o distanciamento se colocam em um trânsito que depende muito de quem é aquele que vê aquele que diz.

Assim, a obra se mantem pulsante de maneiras diferentes a cada manifesto. Enquanto alguns são revelados de maneira discursiva e não deixam dúvidas acerca do que se discute, outros buscam formas menos objetivas de expressão; não há, no entanto, uma relação direta entre tais pesquisas poéticas individuais e a contundência do que elas resultam.

O espetáculo se apresenta como um caleidoscópio da diferença, não buscando estabelecer-se como uno. Para além das singularidades elaboradas poeticamente, cada uma a sua maneira, talvez esteja no título da peça o grande nó que permeia, esteticamente, todos os manifestos.

Ainda que existam – raros – momentos de certa leveza, mesmo estes carregam em si a força do casco que bate no chão do animal que não aceita ser domado. Cavalos livres, é no ímpeto de suas cavalgadas selvagens que revelam-se as exuberâncias da diversidade. Talvez conduzindo o olhar para a multiplicidade do ser, se colham sementes para que as crianças que ainda nascerão com asinhas quebradas possam voar.