aquário (nunca) vazio
crítica da leitura dramática de “Peixe de Estimação”, de Heloísa Cardoso com o grupo Sensório-Cena
foto – registro de ensaio – de Heloísa Cardoso
“and here you are living
despite it all”
– rupi kaur
Nossa trajetória é infestada de parasitas que insistimos em alimentar, ainda que descrendo da existência deles. Em “Peixe de Estimação”, do grupo Sensório-Cena, apresentado dentro da Mostra Vocacional Mulheres no formato de leitura dramática, acompanhamos a trajetória de uma Mulher (Raquel Médici) lidando com essa descoberta de si própria, porém sempre em relação a um outro – homem – (Abmael Henrique).
O texto de Heloísa Cardoso, que também dirige a leitura – e o grupo – aponta, de forma concisa e sintética, uma potência singular nas escolhas de condução de tal narrativa. Em cinco movimentos, sendo um prólogo, três cenas e um epílogo, somos apresentados à busca de uma mulher pela aceitação da concretude do que lhe aflige.
A questão é que, ainda jovem, ela crê ter matado um peixe de estimação. Em seu amadurecimento, de tanto engolir choros, criou um lago na própria cabeça – aquário propício para que outro peixe, um que não morre tão fácil, habite e transite por toda sua existência. A dor dessa vida outra se torna, indiscriminadamente, de estimação.
No prólogo, somos apresentados a uma menina que, no confessionário, revela ao padre suas pulsões de diversas ordens; confundindo, ingenuamente, desejo e violência, não encontra respostas nem em si, nem no outro. Nas três cenas que se seguem, vemos esta mesma mulher, em diversas idades, buscando as formas de lidar com o peixe de estimação que a habita e a destrói por dentro.
Adolescente, buscando na comida uma forma de explodir o animal, escapa da realidade concreta e é interpelada por um garçom – um garçom sensível, artista – que insiste que o campo simbólico é menor do que o real; escapismo para quem não enfrenta seus problemas de frente. Em uma reação combativa e inesperada, através de belas imagens que diferenciam o amor do ódio, ela subverte a violência do apagamento do imaginário em uma resolução às questões do próprio garçom.
Jovem adulta, buscando na espiritualidade sua resposta ao peixe que insiste em atormentá-la, é encontrada por um pescador que, ao oferecer-se cavalheirescamente para ajudá-la, acaba por novamente cometer violências; desta vez, é a partir da compreensão metafórica de uma necessidade real dela. A naturalização gerada passa a ser, neste momento, não do inconcebível peixe que habita um crânio, mas das consequências disso no entorno.
Adulta, já madura, frente à um psiquiatra, a mulher lida com o embate contra as próprias certezas – depois de toda uma vida sabendo do que padece, ainda se faz necessária a validação de uma autoridade outra; um exame, uma prova definitiva de que o que lhe ocorre não é fruto de sua imaginação.
No epílogo, ela, senhora, parece compreender e aceitar sua condição; resolve ela mesma tornar-se peixe e encerrar-se em sua aflição. Porém, percebe-se gente. Que respira ar, não água. Que habita o mundo, e não organismos outros. Resigna-se, então, e aceita o combate. Ainda que o enfrentamento se dê na passagem de tempo, em algum momento o que nos habita morrerá – antes de nós.
Trata-se, então, de um texto cujo cerne é a descoberta de onde está o parasita que nos destrói; uma trajetória de busca e compreensão de si próprio ao longo de nossas histórias, em relação àqueles que passam por ela, sendo peixe, veneno ou cúmplice. O animal que cada um carrega, aqui, é uma imagem que universaliza o discurso absolutamente íntimo do espetáculo. A descoberta cabe a cada um; o público pode tornar-se cúmplice, mas o enfrentamento, na estrutura proposta, é dado pela Mulher, sozinha, para que seja compreendido como que possível para todas.
Flertando com a atmosfera do teatro do absurdo, “Peixe de Estimação” insere a problemática da consciência da protagonista de sua própria condição em oposição à figuras masculinas, arquetípicas, que desacreditam não o absurdo, mas a própria mulher. O homem – aqui não retratado em nenhuma cena como indivíduo – é a “voz da razão” que diminui a possibilidade não apenas da verdade apresentada por ela, mas também da potência mobilizadora do outro – aqui, especificamente, da outra. É, ao mesmo tempo, uma clara referência ao machismo e também do íntimo do que significa o peixe que habita a cada um.
Nesta relação entre uma personagem consciente inserida em circunstâncias absurdas e figuras arquetípicas com pensamento absolutamente cotidiano, há um campo de jogo proposto entre o real e o simbólico que põe em cheque não a possibilidade da existência de um peixe vivendo dentro de alguém, mas sim como tal imagem atinge o espectador.
Dessa forma, ainda que por vezes o discurso soe óbvio e sublinhe questões cujas imagens do texto – e de possíveis camadas da encenação futura – facilmente dariam conta, ele se mantém em uma tensão poderosa entre o íntimo e o universal. Heloísa, cujas obras já apontam uma assinatura consistente, parte de vivências próprias para escrever uma dramaturgia onde o salto poético é dado; transcende o particular e se torna arte no momento em que todos nos damos conta que algo que não alimentamos conscientemente ainda insiste em nos habitar. Desacreditados, diminuídos, somos todos aquários – cheios ou vazios – e talvez também peixes.