arquipélago, destaque, teatro

do sangue nas mãos (aos brasis que vencem)

crítica a partir de Parto Pavilhão, com Aysha Nascimento (SP; dramaturgia de Jhonny Salaberg e direção de Naruna Costa). este texto faz parte da cobertura especial da Mostra Solo Mulheres 2024, do Teatro de Contêiner, com curadoria de Tati Caltabiano; amilton de azevedo é uma das pessoas realizando o acompanhamento crítico do festival. o ruína acesa faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica.

No início de Parto Pavilhão, Aysha Nascimento está com as mãos sujas de sangue. Uma Lady Macbeth às avessas: aqui, o líquido representa o gesto de trazer ao mundo novas vidas; os planos da personagem Rose da Silva não são de ganância e poder. São sonhos e atos de liberdade. Nascimento, só em cena (acompanhada de Reblack, musicista), faz de uma pequena grade cenográfica a representação inicial do horror do cárcere. Ainda que ela esteja cercada de redes, representando tanto o jogo de futebol que acontece no momento da planejada fuga quanto algo de celas, a encenação de Naruna Costa parece o tempo todo dar a ver que se trata de muito mais do que uma história sobre o sistema prisional brasileiro.

O texto de Jhonny Salaberg encerra a chamada Trilogia da Fuga, escrita pelo autor entre 2016 e 2021. Mato Cheio (2019), que a inaugura, é assinada pelo autor ao lado do coletivo Carcaça de Poéticas Negras; a obra parte de um pano de fundo histórico: a fuga de pessoas escravizadas na direção de quilombos no litoral do estado de São Paulo. Atravessando os tempos, a ação era permeada por depoimentos das pessoas integrantes da Carcaça. 

Elidindo cronologias, Buraquinhos ou O Vento é Inimigo do Picumã (2018) foi o primeiro espetáculo a estrear, ainda que seja considerada a segunda parte da trilogia, também dirigido por Costa (o que conferiu à artista o marco histórico de primeira pessoa preta a ganhar um prêmio da APCA na categoria de Direção). Nele, a fuga estava diretamente ligada ao genocídio da população preta e periférica, e enquanto um jovem de Guaianazes (bairro do extremo leste paulistano) era vítima da violência policial, caminhava por sobre fios elétricos, mais uma vez atravessando tempos e viajando por paisagens várias enquanto seguia em fuga, sendo alvejado, esburacado.


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Na apresentação do projeto de Parto Pavilhão, presente no programa da obra, há um apontamento de que “a pesquisa tem como base poética e teórica o conceito Leveza proposto pelo escritor Italo Calvino (…) [que] sugere a busca da Leveza como possibilidade de resistência, como reação ao peso do viver. Como falar de assuntos densos de forma leve?”. Talvez esteja precisamente no alinhavar das palavras de Salaberg que costuram os tempos como Rose tricota as roupinhas de bebê a possibilidade de redimensionar os acontecimentos.

Assim, no reencontro de Salaberg e Costa, Parto Pavilhão traz escolhas estéticas semelhantes às de Buraquinhos. Na dramaturgia, talvez um espaço menor para os grandes voos imagéticos, ainda que a tessitura da escrita de Salaberg consiga inserir nas falas da personagem frases de grande carga poética; há algo de mais seco, como se a situação de Rose, narradora-encarcerada, contagiasse também o desenho do que se diz. A direção de Costa opera mais uma vez na complexa engenhosidade do simples, encontrando em Nascimento uma hábil, técnica e pulsante intérprete.

Há, na origem de Parto Pavilhão, um fato real: em 2009, nove detentas fugiram – seis delas com bebês de até 6 meses no colo – do Centro de Atendimento Hospitalar à Mulher Presa, anexo ao Complexo Penitenciário do Butantã, na Zona Oeste de São Paulo. Oito delas foram recapturadas em menos de uma hora. A inspiração é o apito inicial; a narrativa de Salaberg transporta a temporalidade do acontecimento para 1994 e organiza sua dramaturgia nos dois tempos de uma partida da seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo. Uma bandeira nacional já gasta, em tons de cinza, na cenografia assinada pela Ouroboros Produções Artísticas (Carolina Gracindo, Thais Dias e Iolanda Costa), parece dar a ver que a contenda que se dá ali versa sobre quem perde e quem ganha no país; Parto Pavilhão é desejo e crítica aos brasis que vencem.

No nome do espetáculo, sentidos se acumulam. Rose da Silva permanece, mas as tantas mulheres-mães em situação de cárcere partem do pavilhão. No ofício assumido pela narradora, ela se responsabilizava pelos partos no pavilhão. Enquanto artífice da fuga, sua ação pariu todo um pavilhão de mulheres, agora libertas.

Nas movimentações pelo espaço, Nascimento quase-que tropeça na entrada em novos ambientes, dançando as idas e vindas de Rose, suas memórias, sonhos e narrações, como as agulhas do tricô se entrecruzando. A intérprete parece passear também por tantas idades que Rose teve, tem e pode vir a ter, testemunha e agente dos acontecimentos dos tempos. As histórias se entrelaçam, quando um café é derrubado destino e passado se revelam na borra; as realidades – do mundo, da vida da personagem – esbarram nas ficções – do mundo e da vida imaginada pela personagem.

Lá estão fantasias e invenções, momentos de glória, de alegria, de partilha com crianças que não se pode estar perto. Lá também está a dureza de uma realidade comum, do lugar da esposa de um homem encarcerado e as contradições de uma condenação que poderia se dizer justificável que nada justifica o horror das situações que se apresentam. 

Enquanto a história é contada de forma não-linear, a direção de Costa também produz frestas no tempo da ação. Nascimento conduz o ritmo da cena – com o suporte da trilha de Reblack – e Parto Pavilhão carrega nisso também o futebol que acontece enquanto tudo acontece. A artista acelera e segura o jogo, compreendendo as necessidades de cada cena. Momentos de agilidade, ginga, drible. E a lenta reprodução dos sete agachamentos da revista.

1994. Nas quartas de final da Copa do Mundo de futebol, da qual o Brasil sairia consagrado tetracampeão, ao fazer um dos gols, o atacante Bebeto celebrou com uma comemoração onde carregava um bebê. O gesto entrou pra história e é repetido por Nascimento em Parto Pavilhão. Aos brasis que precisam vencer, lembrar das mãos. Das que se podem lavar, das que se enchem de sangue, das que podem embalar nenéns.

logo do projeto arquipélago
ficha técnica
PARTO PAVILHÃO

Atuação: Aysha Nascimento
Dramaturgia: Jhonny Salaberg
Direção: Naruna Costa
Musicista: Reblack
Desenho de luz e Operação: Gabriele Souza
Sonoplastia e operação de som: Tomé de Souza
Fotos: Edu Luz e Noelia Nájera
Produção executiva: Washington Gabriel
Produção jurídica: Corpo Rastreado

ficha técnica
MOSTRA SOLO MULHERES 2024

Teatro de Contêiner (idealização e produção), Tati Caltabiano (curadoria), Léo Akio (direção de arte, coordenação de comunicação e design), Pombo Correio (assessoria de imprensa), Marcos Felipe (comercial e coordenação de produção), Virginia Iglesias (produção administrativa e financeira), Gustavo Sana (produção executiva e consultoria de projetos), Paloma Dantas (coordenação técnica), Pedro Augusto (coordenação técnica), Camila Bueno (técnica), Lucas Bêda (produção executiva), Sandra Modesto (produção executiva), Sônia Cariri (produção, receptivo, camarim e bilheteria), Thamiris Cariri (lanchonete), Danee Amorim (produção e receptivo), Paula Silva (produção, receptivo e serviços gerais), Isabelle Iglesias (produção e rede social), Nara Oliveira (coordenação de libras), amilton de azevedo - ruína acesa (acompanhamento crítico), Lena - cítrica (acompanhamento crítico).