arquipélago, destaque, teatro

fazer da cena um pequeno imenso mundo

crítica de Para Mariela, do Grupo Sobrevento. o ruína acesa faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Um homem leva uma caneca à boca. Pausa. Despeja o conteúdo em uma bacia; parece sal. Ele atravessa o espaço cênico. Movimenta a bacia e o sal ressoa feito água; um deserto-mar se desenha como paisagem sonora. Para Mariela, do Grupo Sobrevento, é um contínuo e delicado convite ao brincar de imaginar. O mar surge como espécie de utopia central nas narrativas que se avizinham, uma utopia bonita que dialoga com a fonte de muitas das histórias da pesquisa documental do coletivo no território onde possuem sua sede: lembranças, sonhos, desejos de crianças, a maioria delas imigrante bolivianas – ao lado do Paraguai, únicos países do continente americano sem costa marítima.

A cenografia de Luiz André Cherubini, também diretor ao lado de Sandra Vargas, apresenta-se primeiro como uma árida caixa de areia, algo de um deserto. Aos poucos o espaço ganha mais e mais vida, tanto no sentido literal – com a utilização da areia para a construção de casas – quanto no simbólico, com lembranças de passados sendo contadas com brilho nos olhos pelo elenco – Cherubini, Vargas, Maurício Santana, Agnaldo Souza, Liana Yuri e Daniel Viana. O que se escuta e o que se vê contém em si a beleza do ato teatral; e há um tanto que se oferece ao público para que se veja além do que está ali. A cena aberta faz de Para Mariela um poema que é escrito no encontro. E se em uma concha cabe todo o mar, no teatro cabe todo um pequeno imenso mundo a ser construído.

Uma pequena planta é a bananeira por onde se vê a lua, uma espátula abre estradas, punhados de terras coloridas são morros; a plateia é também parte da paisagem, feita montanhas, estrelas e peixes entre gestos do elenco e a iluminação de Renato Machado. Parte dela, no início, chama a atenção – a pequena ribalta de led que circunda a caixa de areia parece deslocada naquele ambiente; mas, conforme tudo se recria e se transforma, faz todo sentido que ela esteja ali. Para Mariela se faz e refaz, simultaneamente na rapidez que uma brincadeira se torna outra e no tempo dilatado da contemplação.



O que se poderiam chamar de cenas de transição, nas mudanças de atos, espaços, atmosferas, histórias, são preenchidas de modo diverso: um pequeno ônibus cruza toda a cidade construída, fazendo dos tantos metros infinitos quilômetros que separam um imigrante de sua casa; depois, enquanto enrolam um imenso pano que será a maré trazendo tudo que há no mar na cena que seguirá, ator e atriz contam às gargalhadas do diálogo de uma criança com sua avó. O riso e a alegria contagia elenco e público; e Para Mariela é um constante encantamento que também emociona.

Fundado em 1986, o longevo Grupo Sobrevento possui cerca de 20 trabalhos em repertório, como contam no livro Teatro de grupo na cidade de São Paulo e na grande São Paulo: criações coletivas, sentidos e manifestações em processo de lutas e de travessias (Selo Lucias, 2020, disponível gratuitamente no site da SP Escola de Teatro), com organização de Alexandre Mate e Marcio Aquiles. Nele, lemos que o Sobrevento acredita “no teatro como encontro e cada espetáculo propõe uma diferente relação com o público. Todas as encenações do Sobrevento são muito diferentes umas das outras e nascem de uma pesquisa que pode se basear em técnicas de animação, temáticas, textos e fenômenos teatrais, mas que se concentra, sobretudo, na promoção de cruzamentos insuspeitos como forma de provocação e de desestabilização”.

Esses cruzamentos insuspeitos podem surgir de muitos modos em Para Mariela. Ao longo de sua trajetória, diferentes técnicas são utilizadas dentro do universo das possibilidades do teatro de animação e do teatro de objetos, com a construção de bonecos, máscaras, cabeções, que entram e saem de cena em uma dinâmica apoteótica. Na lida com a criação voltada para bebês, crianças e adultos ao longo de sua história, o Sobrevento faz de Para Mariela um trabalho indiscutivelmente para todas as idades. A imaginação de todas as pessoas do público é respeitada e os elementos da encenação se abrem para as fruições mais diversas; os procedimentos estão à vista, as operações, as técnicas, há um fazer-ver também do como tudo se dá – excetuando-se, evidentemente, os momentos onde há uma revelação, um brincar-de-ilusão em uma entrada de cena ou transformação. 

E tudo vai se transformando em Para Mariela. As permanências e travessias, as ressurgências da infância, os sonhos de toda uma vida. A busca pelo sol resulta em um tornar-se pequeno sol, na imagem que resulta da linda conjugação entre a iluminação de Machado, o movimento delicado de Yuri e, em especial, o figurino de João Pimenta. Na condução dos acontecimentos, mesmo que não os compreendendo de forma linear, as vestes do elenco também contam dessas vidas e compõem esses mundos em movimento. Dos tons terrosos de quem é também parte daquela terra ao azul-jeans do mar e os bordados, que remetem à realidade do trabalho de muitas imigrantes bolivianas em nosso país, passando pelo pequeno sol de espelhos, os figurinos de Pimenta são condutores – e comentadores – das paisagens imaginadas.

Há, ainda, um acontecimento que até se dar parece insuspeito, mas que faz sentido imediatamente: a presença dos músicos Goyo, Lolo e Juan Cusicanki. Para Mariela é, em seu título, uma homenagem a uma mulher imigrante boliviana; quando os três surgem na cena, a obra faz de si pura celebração dos encontros e da diversidade do existir. Das muitas histórias de casas, vilas, vidas; de uma cidade que se constrói na terra a um sol que brilha para todes. Um deserto de sal e um mar-utopia que se inventa em movimento. No pequeno imenso mundo sonhado, construído, brincado e ofertado pelo Grupo Sobrevento, miudezas e vastidões se fazem entre criações e resgates, técnica e poesia; entre objetos-documento e narrativas-memórias.

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ficha técnica
PARA MARIELA

Criação: Grupo Sobrevento
Direção: Luiz André Cherubini e Sandra Vargas
Dramaturgia: Sandra Vargas
Elenco: Sandra Vargas, Luiz André Cherubini, Maurício Santana, Agnaldo Souza, Liana Yuri e Daniel Viana
Músicos: Goyo (charango), Lolo (quena e zampoña) e Juan Cusicanki (percussão)
Iluminação: Renato Machado
Figurino: João Pimenta
Assistente de Figurinos: Jaqueline Lima e Sofia Duarte
Cenografia, direção musical, letras e adaptação das canções: Luiz André Cherubini
Cenotecnia: Agnaldo Souza
Máscaras e adereços: Agnaldo Souza, Liana Yuri e Mandy
Bonecos: Agnaldo Souza e Luiz André Cherubini
Assistência de confecção bonecos e máscaras: Mosaico Cultural e Giulliana Pellegrini
Supervisão Música, Dança e Cultura Bolivianas: Juan Cusicanki
Técnico de Iluminação: Marcelo Amaral
Programação visual: Ato Gráfico
Fotografia: Lauro Medeiros
Registro Audiovisual e Teaser: Icarus Filmes

serviço
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