a história como memória encarnada
crítica de “País Clandestino”, de Florencia Lindner, Jorge Eiro, Lucía Miranda, Mäelle Poésy e Pedro Granato, apresentado na 5ª MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo
foto de Pablo Mekler
Uma residência artística em Nova Iorque, no ano de 2014, faz com que cinco artistas de diferentes nacionalidades se encontrem. No primeiro momento, juntos pelo acaso, o que os unia era a condição de estrangeiros – e o fato de todos serem fluentes em espanhol. Florencia Lindner (Uruguai), Jorge Eiro (Argentina), Lucía Miranda (Espanha), Mäelle Poésy (França) e Pedro Granato (Brasil) decidem, a partir deste primeiro intercâmbio, desenvolver um espetáculo.
“País Clandestino” estreou na Argentina e passou pelo Chile antes de chegar à MITsp. Em cena, os cinco – dirigidos por Eiro e Poésy – conversam entre si, com o público, com acontecimentos históricos e seus vínculos afetivos. Datas, fotos, gravações: a obra tem forte tom autodocumental. No entanto, a dramaturgia – assinada por todos eles – aproveita-se da ficção para dar cores mais fortes em alguns momentos; principalmente em uma das primeiras cenas, uma reunião em torno de uma mesa onde sintetizam muitas das discussões que tiveram.
A relação de cada um com a política de seu país, passando por questões de fomento à cultura até a admiração a ex-presidentes, exposta em um debate recheado de provocações e gozações, antes de se tornar uma grande confusão, parece criar certa fricção entre os cinco. É inegável que todos se encontram no espectro político da esquerda – mas isso ganha significados diversos quando se considera o país onde vivem.
É neste jogo entre a identidade de cada um dos artistas e acontecimentos históricos e localizados que o espetáculo se desenvolve. Todos estão na faixa dos 35 anos, o que traz uma pulsão de vida para a lida com as diversas questões. Desde o cômico momento onde reencenam noitadas até a coreografia que introduz o tema da manifestação política, há um engajamento muito nítido no desejo de compartilhar aquelas histórias e pensamentos.
Para além de uma construção individual da subjetividade, o encontro em Nova Iorque e o processo engatilhado por ele parece ter levado os cinco à percepção da necessidade de estrangeirar-se para reconhecer a própria nacionalidade. Uma crítica do pensamento colonialista é pincelada na discussão da mesa, mas “País Clandestino” escolhe jogar com o que há em comum na complexidade de cada um – questões reducionistas e preconceituosas apenas aparecem como suas ideias de infância; o que já significa muito. Ao passo que começam a relacionar suas histórias com as histórias dos seus países, há muito de específico mas muito de universal no que vem à tona.
É a percepção de que em nossos corpos está, pelo bem ou pelo mal, a história de nosso país. A reverberação de macro e micro acontecimentos na nossa subjetividade presentifica e ressignifica a todo instante o que seria a nossa identidade nacional. Como se a história passasse a ser compreendida em seus afetos; como memória encarnada. Assim, a obra lida com o trânsito entre a história de cada país e de nossa história, desde antes de nossos pais.
Apresentando uma linha do tempo que pontua momentos-chave do século XX, acontecimentos globais e nascimentos de avós se misturavam. Pois talvez efetivamente não se possa descolar o que nos acontece com o que acontece no país. O compartilhamento de vivências e histórias pessoais – seja em uma fala emocionada como a de Granato, seja em um momento de silêncio de Lindner – faz com que os traços documentais da obra se atrelem a este vínculo afetivo entre quem somos e onde vivemos.
Com encenação despretensiosa – no melhor sentido – “País Clandestino” acende diversas vezes a luz da plateia, com quem estabelece cumplicidade desde o início e a reassegura em diálogos diretos. Assim, o espetáculo parece conter em si a vontade do transbordamento do encontro. Transborda, também, a história: passando por impressões infantis, voltando-se para a ancestralidade, lidando com questões familiares e políticas muito próximas, a obra termina com anseios de futuro; desejos sobre o que talvez nem venha a existir.