performance

transbordar

um relato crítico de Ophelia is A-live, performance relacional multiplataforma de Rúbia Vaz.

Acordo. Instintivamente olho meu celular. No whatsapp, mensagens de um número do Rio de Janeiro. É Rúbia Vaz, que assina concepção, dramaturgia, direção e performance de Ophelia is A-live. Primeiro estranhei: conheço Rúbia há um tempo e imaginava ter o telefone dela; me dei conta só depois que ela já não mora em São Paulo e trocou o DDD. Parece uma informação irrelevante, mas é importante apontar desde o início que eu já conhecia a performer (ou talvez não seja tão importante).

Na mensagem, uma informação e dois pedidos: ela precisa falar comigo, mas não pode naquele momento; quer que eu ouça uma música e leve à ela um copo d’água. Coloco a música para tocar – Cry, cry, cry, do Johnny Cash – e acompanho a letra na legenda. Não é exatamente um modo animado de começar o dia.

Soon your sugar-daddies will all be gone / You wake up some cold day and find you’re alone / You’ll call for me but I’m gonna tell you bye, bye, bye / When I turn around and walk away you’ll cry, cry, cry

Respondo com uma foto de minha garrafa d’água, numa simbólica oferta virtual. A construção de obras relacionais têm encontrado formas interessantes, híbridas e multiplataformas neste contexto pandêmico; ao mesmo tempo, certas convenções ainda pairam no ar. Nesse sentido, é importante o comentário de Vaz em uma ligação ainda pela manhã: você pode interagir mais ou menos comigo; eu só preciso saber que você está aí.

Ophelia is A-live é uma performance relacional cuja dramaturgia é extremamente porosa no sentido em que a troca com o participante cria novas possibilidades de leitura e experiência – tanto para a performer quanto para quem vivencia a obra. Ao mesmo tempo, o texto de Vaz sustenta a permeabilidade: trechos de Hamlet surgem organicamente dentro de um papo e se amarram com a visão da autora sobre as angústias de Ofélia; sobre as circunstâncias que levam tantas mulheres à afogamentos metafóricos e concretos.

A formalização da obra, de caráter experimental e processual, chama atenção por diversos motivos. Um deles é sua duração temporal. A escolha de dilatar a ação performativa ao longo de um dia inteiro permite que o participante, mesmo que dentro de uma rotina própria, se mantenha conectado à atmosfera de Ophelia is A-live. A obra não existe apenas nos momentos de interação; ela reverbera, seja pelos dispositivos lançados por mensagens, vídeos, ligações e pedidos, seja pela expectativa do que (e quando) virá o próximo elemento.

A dilatação também constrói uma tensão com o próprio suporte: a velocidade das redes sociais é a velocidade de quem está sempre correndo atrás do que já passou – falei isso no telefone com Rúbia, ainda pela manhã. Uma série de ações que permitem demorar-se fricciona esse tempo – que é muito mais veloz que a nossa capacidade de processamento.

Assim, por toda uma sexta-feira estive com Rúbia – fosse assistindo-a em vídeo, conversando com ela por telefone ou só deixando ecoar o que foi dito. A primeira ligação foi quase uma conversa entre velhos conhecidos que há muito não se viam; conduzida, indubitavelmente, pela proposta dramatúrgica de Vaz. Sobre a quarentena, sobre os tempos, sobre presentes e o presente.

Rúbia pergunta e se permite ouvir. Enquanto ela me escuta falar, ouço os goles d’água. Será assim por todo o dia. Mas Vaz não se afoga; é como se transbordasse. Além de Shakespeare, a fragmentação da personagem-título evoca de algum modo também Heiner Müller; Ofélia, aquela que o rio não conservou. No entanto, Ophelia is A-live não é uma mera referenciação ou mesmo uma reconstrução – algo tantas vezes feito – da contraparte feminina de Hamlet, enlouquecida por ele no que talvez seja o mais clássico gaslighting da dramaturgia universal.

A relação entre eles é tomada como ponto de partida para que se desvelem outras violências em relacionamentos. Talvez, majoritariamente, em relações heterossexuais, em violências ligadas ao gênero; Hamlet é homem, Ofélia é mulher – isso é um dado fundamental. Vaz convoca o participante à reflexão sobre sua própria vida. Não que haja uma pressão nesse sentido, mas a própria organização da performance suscita o ato de resgate de lembranças do passado, distante ou recente. Aos poucos, questões vinculadas ao machismo vão ganhando cada vez mais corpo.

A obra, inicialmente concebida como trabalho de conclusão do curso de pós-graduação em atuação e direção de Vaz no Célia Helena, sob orientação de Joana Dória, vêm se desenvolvendo há algum tempo – a autora também passou pelo núcleo de direção da Escola Livre de Teatro, orientado por Luiz Fernando Marques Lubi. Desse modo, vivências da artista foram costurando-se à Ophelia is A-live no decantar do tempo das coisas. Uma faixa no spotify traz relatos de observadoras de outra performance de sua autoria; pelas narrações, uma ação repetitiva de enrolar e desenrolar um novelo de lã. Uma Ariadne sem Teseu?

Arthur Murtinho, companheiro de Vaz, assina imagens, som e montagem na obra. Ele também atua, segundo a performer, como testemunha. Paradoxalmente, sua presença ali carrega uma força de contradição e de legitimidade. Mas uma legitimidade que não advém da maneira mais comum em nossa sociedade machista, e sim por seu avesso. Por ele estar ali como Outro – papel poucas vezes delegado ao homem, que é sempre eu. É uma testemunha simbólica, do ato performático, e literal, das opressões e violências vividas por sua companheira. Não é um Teseu, não é um Hamlet. É um componente do dado de alteridade em Ophelia is A-live; um participante presente desde o processo criativo – que mistura-se à própria vida.

Assim, é interessante notar que este é o relato de um homem cisgênero que acompanhou a performance. Conforme respondi para Rúbia quando perguntado sobre uma vivência, eu já fui Hamlet. De tal modo que os constantes goles n’água e o caminho que transborda – não em aquário ou mesmo na literal piscina dos vídeos, mas num rio sem afogamentos – são recebidos simultaneamente como sopro de vida e soco no estômago.

Conforme o nome anuncia, em um trocadilho apropriado para os tempos de isolamento, Ophelia is A-live termina… em uma live, no instagram da performer. Ali, um relicário do que foi aquele encontro. Elementos da composição de Vaz, mas também recolhidos de sua escuta de meus relatos. Um silêncio, em meio ao tanto que grita. Um transbordamento para que não mais mulheres se afoguem – ou sejam afogadas.