das lacunas entre gesto e angústia
crítica de “Onde estão as mãos, esta noite”, uma peça de quarentena com Karen Coelho, direção de Moacir Chaves, dramaturgia de Juliana Leite e direção de arte de Luiz Wachelke. em cartaz no Zoom.
[com a colaboração de Andréa Martinelli na edição]
Onde estão as mãos, esta noite não é uma obra sobre a pandemia do novo coronavírus. É um produto dela. O programa do espetáculo, em cartaz no Zoom, a define precisamente como uma peça de quarentena. Ao entrar na sala do aplicativo de videoconferências, o público é recebido pela dramaturga Juliana Leite e pelo diretor Moacir Chaves. O espectador com um olhar mais atento já percebe uma sala vazia – o cenário (Luiz Wachelke assina a direção de arte) onde pousa a atuação solo de Karen Coelho.
Enquanto algumas funções usuais do processo criativo – e da cadeia produtiva – teatral acabam desaparecendo na transposição do presencial para o online (e é fundamental refletir acerca disso), na reinvenção de convenções, outras surgem: antes do início, além das boas-vindas, o necessário passo-a-passo das configurações do Zoom para a melhor apreciação da obra.
O ambiente vazio então ocupa a tela. Ao fundo, plantas e um abajur sobre um móvel; sobre a mesa, um telefone e uma taça de vinho. Na parede em frente à câmera, uma porta. Neste tempo inicial instaura-se um certo mistério. A atmosfera está preenchida por lacunas desde antes da entrada de Coelho. A dramaturgia de Leite, refinada e muito bem alinhavada, parece fazer repousar nos hiatos o sentido de Onde estão as mãos, esta noite.
Chaves conduz a atriz com precisão por sons e silêncios, movimentos e paralisias. No movimento das mãos, uma camada narrativa central da encenação é revelada – ainda que seus sentidos não sejam inteiramente compreendidos. Constrói-se, pouco a pouco, um angustiante mosaico de gestos que desenham o insólito do cotidiano pandêmico. Entre o tédio, a ansiedade e o humor possível, a personagem passeia dos mínimos devaneios à profundas questões existenciais.
Intérprete hábil, Coelho captura o espectador para o vórtice impulsionado pelo isolamento; lançada para dentro de si, a figura é confrontada por reflexões sobre álcool em gel, abraços e a liberdade. Aliás, um ponto interessante de Onde estão as mãos, esta noite é a escolha por não definir quem é o interlocutor desta mulher. A atriz olha fixamente para a câmera – e Chaves compreende o enquadramento fixo como dispositivo cênico, desenhando recortes pontuais na movimentação dela – mas cada vez mais parece estar falando com si mesma.
O viés lançado sobre o contexto atual é subjetivo; evidente que não é a sociedade como um todo que vivencia a pandemia de tal maneira. Porém, de algum modo, todas as pessoas que puderam ou podem se manter em isolamento devem ter, minimamente, mesmo que por um instante, encarado a si mesmas e si mesmos. Afinal, o que acontece na ausência de um outro ou da intensa relação com um outro?
Na fragmentação da dramaturgia de Leite, a sensação inicial é a de visitar um site de notícias ou descer a timeline de uma rede social: nos gestos e falas, as tantas faces de um mesmo momento. Coelho parece desenhar sintomas e propor autoexames. Como se as mãos primeiro se ocupassem com o agora; com o imediato. Aos poucos elas começam a habitar instantes mais longos – até que em momentos, as mãos, esta noite, já estão até mesmo em abraços futuros.
Da desesperadora angústia de tudo a se ver, ouvir e pensar, ao desafiador tédio e um tempo dilatado, outro, de si consigo mesma. O caminho de Onde estão as mãos, esta noite é de um esvaziamento da pressa; da percepção do absurdo da realidade. Resta a lacuna, o não-dito que insiste em habitar o espaço entre gesto e fala, entre agir e pensar.
Ela passa batom, coloca brincos, veste a jaqueta. Ao passar pela porta, sabe-se que não está saindo de casa – nem mesmo daquele estado. Atravessada a ansiedade das incertezas em que se vive hoje, o que talvez fique seja mesmo este arrumar-se para sair de si. Pois não há isolamento que nos afaste de nós mesmos.
penso que todo o tempo estive no seu espelho, ou fui o espelho dela entendendo exatamente o que acontecia pois o mesmo acontecia comigo todo o tempo e naquele momento se intensificava pela presença dela uma outra eu mesma