as muitas mortes e os fins dos mundos
crítica de “O Padre do Balão”, do Coletivo Quiçá de Teatro
foto de Aline Baba
No meio de uma estante repleta de memorabilia no fundo do palco, um escrito anuncia: “esta peça fala sobre o clichê do fim do mundo”. Situa-se, então, o espectador dentro de um campo de possibilidades. O nome do espetáculo – “O Padre do Balão” – também traz consigo uma série de expectativas frente ao que será visto. No topo da estante, um rádio parece sintonizar, entre ruídos e silêncios, estações diversas.
Com direção e roteiro de Aline Baba, a dramaturgia coletiva encontra sua costura narrativa localizando figuras bem distintas em um mesmo ambiente: uma espécie de abrigo pós-apocalíptico. Em comum, a incerteza de como foram parar ali – além de uma ausência de memória, há lapsos de uma consciência que se desfaz. Como se Godot já tivesse passado e nada mais houvesse a se esperar, a peça bebe em elementos beckettianos neste cenário. Não há nenhuma possibilidade de ação; as consequências dos mais variados atos foram esvaziadas.
As interações das figuras neste espaço, ainda que quase sempre mais próximas do nonsense do que de qualquer racionalidade, também jogam de certa maneira com o espectador: ao mesmo tempo que há a construção fabular do abrigo isolado e de um mundo que se acabou do lado de fora da porta, surge em momentos uma camada que tangencia o épico, com a assumida relação teatral. O enquadramento da ficção brinca com o público que assiste – seja em provocações, seja em comentários que apresentam de forma mais direta o discurso do espetáculo; afinal, é “o clichê do fim do mundo”.
Para além deste espaço concreto, abre-se um outro campo; trata-se de intervenções protagonizadas cada vez por uma das figuras – sejam solos ou cenas com a participação de outros – em linguagens variadas. Como se cada estação que ocasionalmente era sintonizada pelo rádio no abrigo realizasse um resgate de um outro possível; um presente-memória-pesadelo, que poeticamente parece preencher de sentido aquelas existências vazias.
É neste espaço que se verifica uma das maiores potências do recém-formado Coletivo Quiçá de Teatro. Partindo de notícias reais que eram do interesse de cada ator, estes constroem – sob a preparação de Alexandre Passos, que também assina a concepção da obra – uma espécie de depoimento pessoal sobre a relação construída com a notícia. O elenco (formado por Ana Sofia Santana, Caio Martins, Guilherme Correa, Loic Damiani, Loro Bardot, Rosana Santesso e Vinicius Brasileiro) debruçou-se então na elaboração cênica dos conteúdos levantados.
Quase um anti-teatro-jornal, por assim dizer, os fatos noticiados estabelecem meramente um universo e servem de ponto de partida. O que está em jogo é a leitura poética de cada artista sobre aquilo. Verifica-se desta maneira um espetáculo cuja consistência está na manutenção da singularidade de cada intérprete. Considerando ser este o primeiro projeto do Quiçá, cabe apontar a importância de, coletivamente, a partir das técnicas e áreas de interesse individuais, encontrar – em ação – a identidade do grupo.
São linguagens múltiplas que se apresentam a cada intervenção. A expressividade dos corpos se revela de maneiras diversas – há momentos de forte inspiração performativa, uma dupla faz um jogo clownesco, outros trazem dados do teatro físico; a presença de partituras corporais é constante e talvez situe um campo comum de linguagem.
Tal qual a multiplicidade da forma há também uma numerosa gama temática em seu conteúdo. Não sem risco e talvez possíveis confusões na leitura, o recurso dramatúrgico do apocalipse parece dar conta de cada recorte pretendido. A violência se estabelece como ponto pacífico entre as escolhas do elenco. Mesmo na comicidade das notícias sobre mortes absurdas há um dado terrível neste sentido.
São muitas as mortes que se apresentam. Sejam elas causadas pela indústria, pelo Estado, pelo ódio; pela estupidez. “O Padre do Balão” discute política e afetos sem considerar tais categorias como isoladas. A obra tensiona pensamentos sociais e seus efeitos sobre relações pessoais.
As figuras, de maquiagens expressivas e figurinos esfarrapados (de Olívia Mattos), parecem vestir – ou ser – aquilo que desejam, que um dia desejaram, ou o que fizeram delas; o que as permitiram ser. Ao incluir o público neste abrigo, a obra apresenta seu discurso de forma cristalina em seu momento final: não estamos todos nós no fim do mundo? Basta abrir os jornais.
O rádio que insiste em bombardear aqueles sobreviventes com memórias-pesadelo de um passado-presente os conduz de encontro a algo que talvez nunca teriam sido. O absurdo da realidade, que parece há muito ter superado a ficção, parece consumi-los na direção da sublimação ou da violência. Tentar alcançar o céu também pode ser um fim do mundo.