arquipélago, performance, teatro

da elasticidade de conceitos e horizontes

crítica de O Museu Voador, de Lívia Machado. o ruína acesa faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Lívia Machado começa O Museu Voador na frente do Parque Trianon com uma leitura: a troca de e-mails entre a artista e a equipe do Museu de Arte de São Paulo (MASP). A realidade é o primeiro pouso. Interlocução, orientações e restrições apresentadas, o papel lido aos poucos se torna um avião de papel. O voo começa com breves apresentações do grupo da vez. O Museu Voador é, talvez antes de tudo, em sua estrutura, visita guiada.

A dramaturgia de Machado, também encenadora e atuadora (o trabalho conta com interlocução cênica de Janaina Leite e Renan Marcondes, além de preparação vocal de Mila Aguiar), se encontra em processo há anos. É curioso pensar que ela não foi escrita pensando especificamente no acervo do MASP ou de suas exposições temporárias: O Museu Voador é, também antes de tudo, uma visita guiada à própria ideia de um museu.



Machado conduz o pequeno grupo com um braço levantado. Em sua mão, olhos estão desenhados, como que uma visão tátil – que não tocará nenhuma obra senão a construída na imaginação das pessoas guiadas. Antes de atravessar a Avenida Paulista, compartilha seu plano: roubar a obra However (1948), de Maria Martins. Uma pequena impressão em um cavalete representa a escultura; enquanto ela traça na calçada o quadrado de fitas crepe que delimita a distância de observação, penso em Salvatore Garau e suas obras invisíveis – no vídeo onde apresenta Buddha in Contemplazione, o artista italiano mostra, sobre um fundo preto, a frase “…ormai esiste e resterà in questo spazio per sempre”: agora existe e permanecerá neste espaço para sempre

Da ideia radical de um trabalho artístico que existe apenas na imaginação de quem a (não) vê a este Museu Voador há um trajeto que passa por habitar o museu visitado e suas materialidades, pela construção de relações, pela descoberta das obras e pelo traçar de leituras que dialogam o que se enxerga, o que se escuta da dramaturgia e o poema que se constrói em cada corpo e mente que se faz presente ali. Ainda assim, aproximam-se Garau e Machado nestes atos inventivos de convocação à imaginação radical como quase que uma necessidade da fruição.

Na fila de entrada, o público é convidado a pensar em definições de museu, sucintas. Baú colonial, curadoria da história e da arte, espaço de memória e de imaginação foram algumas das ideias compartilhadas na sessão assistida. Então, o MASP. Do lado de fora do salão expositivo do primeiro andar, Machado introduz a historicidade do conceito de museu. Fala sobre o Conselho Internacional de Museus (ICOM) e seus debates e também sobre a trajetória de seu próprio trabalho. Sobre a fundamental elasticidade de conceitos, especialmente nas humanidades, transformando-se com as sociedades e as culturas. O Museu Voador contextualiza seu chão antes do voo. Machado introduz a sua hipótese, de modo que a obra também se organiza simultaneamente como experiência de ficção e experimento científico; um museu utópico, um museu aquariano, um museu alienígena, um museu de distintas materialidades.

Uma data se torna auspiciosa: 24 de agosto. Machado fala de sincronicidades em torno do dia, e O Museu Voador navega em algo de new age na livre associação entre símbolos egípcios, alquímicos, visões astrológicas e dados astronômicos, definições cabalísticas e orixás. Ao mesmo tempo, a operação é fundamentalmente simbólica mesmo quando de um ato quase psicomágico no final. O Museu Voador é continuadamente propositivo, reflexivo, crítico, imaginativo. Não só conceitos devem ser elásticos, mas também o horizonte que se apresenta diante de um céu tão baixo.

O que pode ser um museu? Nas quatro sub-hipóteses de Machado, a escolha de alguma obra que compõe algum diálogo com o que se diz, de modo mais ou menos direto. Além de Maria Martins, Abdias do Nascimento, MAHKU (Movimento dos Artistas Huni Kuin), Tarsila do Amaral e os estrangeiros Hieronymus Bosch e Nicolas Poussin. Enquanto a ideia central da obra não se desprende da materialidade de onde ele se insere, O Museu Voador expande a definição de museu quando parte da materialidade de sonhos como fonte criativo-conceitual e constrói relações entre espaço expositivo e espaço do corpo; é como se a ideia de museu se tornasse ponto de partida para um voo entre palavras, pensamentos, corpos e tempos. Um convite a imaginar passados e confrontar futuros.

Ao falar de incêndios, a tangibilidade de acervos aproxima os céus e a computação em nuvem, hard disks e meteoritos; o que se perde e o que existe enquanto virtualidade. O irrecuperável do Museu Nacional e o que existe não-existindo do Museu da Língua Portuguesa. Museus dão a ver existências ou constroem existência?

Na saída do espaço que hospeda o acervo permanente do MASP, uma dramaturgia sonora acompanha o público enquanto se pode observar as costas das obras, uma espécie de exposição à parte, flutuando nos cavaletes de Lina Bo Bardi. Algo também talvez possa se perder na flutuação do movimento, mas o que parece é que mesmo esse limiar do que escapa faça parte da experiência do Museu Voador.

Em certo sentido, o único momento que traz algo ruidoso por todo o caminho da obra é quando, diante de However, o plano do roubo anunciado é abandonado de forma corriqueira por uma escolha dramatúrgica que poderia ser melhor alinhavada – especialmente considerando que trata-se da primeira ação apresentada por Machado no início da encenação, e que evidentemente era imediatamente entendida como chiste. É um detalhe.

Quando Machado fala da materialidade daquilo que voa, com as mãos cobrindo os olhos que se abrem de outro modo, O Museu Voador já se coloca como convite de sonhar museus; de se fazer ser em si museu de si mesmo e de tudo que não somos mas podemos sonhar. Na última parte do trabalho, a escrita de proposições da definição de museus é feita no espaço do subsolo; no dia assistido, a exposição de Leonilson estava desmontada para um evento. Então, aquele pequeno grupo flutuante se depara com o vazio para propor o que ali poderia habitar-ocupar. No início, o Parque Trianon já estava fechado; ao final, o MASP também fecha suas portas. Mas conceitos e horizontes, ainda que existam no agora, não estão nem aí para a cronologia das coisas e O Museu Voador se faz também viagem no tempo.

logo do projeto arquipélago

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ficha técnica
O MUSEU VOADOR

Dramaturgia, encenação e atuação: Lívia Machado
Interlocução cênica: Janaina Leite e Renan Marcondes
Preparação vocal: Mila Aguiar