na ausência da memória finda-se o tempo
crítica de “O Despertar dos Caracóis logo após as Tempestades Artificiais”, do Coletivo Caracóis
No saguão do teatro, surgem três quadros vivos. Vermeer, Da Vinci e Caravaggio. A Moça com o Brinco de Pérola conversa com Mona Lisa e a Medusa. Neste diálogo entre clássicos, o tom não corrobora nem o olhar íntimo, nem o sorriso misterioso: talvez a expressão mais condizente com a atmosfera de O Despertar dos Caracóis logo após as Tempestades Artificiais seja a de uma decapitada e perturbadora Medusa.
O Coletivo Caracóis, formado no âmbito da SP Escola de Teatro, apresenta em seu processo de pesquisa reflexões sobre os tempos. Estejam eles ligados à memória, à sociedade, à arte e, talvez centralmente, ao corpo. Depois desta espécie de prólogo, onde as obras clássicas observam suspeitas certa movimentação em sua ala do museu — as pessoas já não se interessam mais por elas — o público é surpreendido por uma marchand um tanto histérica, orientando todas e todos para entrar no lugar correto; o palco hospeda uma espécie de vernissage.
Ali, um personagem está destruindo o Abaporu, entendendendo que está criando uma obra nova. Nas relações que se desdobram, o registro histriônico permeia a construção de quase todas as personagens — menos o garçom, que trabalha no museu. Tanto escolha quanto exceção justificam-se ao longo do espetáculo, em uma composição interessante entre muitas vozes: a direção é de Adolfo Barreto, Náshara Silveira e Sol Faganello; coassinam a dramaturgia Antônio Salviano e Carina Murias. Na ficha técnica do Coletivo Caracóis, todas as funções da criação do espetáculo estão divididas entre no mínimo duas pessoas.
Tal pluralidade constrói um espetáculo coeso. Há espaço para a iluminação de Mutton Andre, Vinicius Benhami e Elio Alves da Silva — destacam-se alguns recortes e o jogo proposto entre as lanternas do elenco e as telas brancas do cenário — e para a sonoplastia de Fabio V Freund, Gabriel Nobre Candido, Maria Carolina Ito e Leonardo C. Manffré que estabelece a música como uma camada de respiro frente às interpretações.
No cenário e figurino de Carolina Dabdoub, Cinthia Cardoso e Italo Iago, instaura-se uma localização entre o futurista e o distópico. Em diálogo com o registro dos intérpretes, há algo de artificial naquela humanidade; um ruído que aos poucos se compreende com o desenrolar da narrativa. A ação se passa no porão do Museu Nacional. Entre quadros antigos cobertos por cortinas e telas brancas sendo superficialmente louvadas, emerge um dialético paradoxo.
Estas insuportáveis figuras sem memória são simultaneamente conservadoras e entusiastas da arte contemporânea. Há certa dubiedade na crítica elaborada em O Despertar dos Caracóis, e ela é muito bem-vinda. Ao passo que a obra em si está absolutamente imersa em pesquisas de linguagem contemporânea, estabelece-se a assunção de que a juventude não é nada sem história.
É comum observar, na arte e em outros campos, uma recusa dos mais jovens à tradição e à memória; como se cada geração fosse lançada na direção do vazio em uma busca incessante pelo novo. No espetáculo do Coletivo Caracóis, o entendimento se desenvolve de outra maneira: em um país onde a memória é incendiada, a história queimada, o que dizer da metáfora? De que servem anseios que miram uma juventude eterna se esta não tem o poder sobre a própria narrativa? Um corpo velho é um corpo com marcas da própria história; e o processo que leva a ele não é senão a vida.
“Não há metáfora, Luzia”, afirmam as mulheres do Coletivo. Organizada em uma trajetória desenvolvida de maneira muito competente, O Despertar dos Caracóis sabe quando deixar o jogo entre imaginação e entendimento do público livre e também quando escancarar seus discursos — e neste sentido, faz escolhas inteligentes em como estruturar sua representação.
Na aparente jovialidade de todas e todos, perde-se a distinção entre as idades. E ao contrário da imortalidade dos quadros clássicos que receberam o público, aqui nada permanece: o próprio tempo se exauriu. Nesta sociedade (nem tão) distópica que recusa o envelhecimento às custas da própria experiência, o vislumbre da presença de um corpo velho é simultaneamente uma irrupção do novo e uma evocação à tradição.