teatro

finitude, finalidade: expectativas e instituições

crítica de O amor e seus fins, de Cris Wersom, com direção de Fernanda Raquel e atuação de Wersom e Rodrigo Scarpelli.

No centro do Galpão do Folias, uma grande mesa, vazia, cercada por cadeiras. Duas plateias se encaram diante do cenário de Simone Mina. Quando Cris Wersom e Rodrigo Scarpelli entram no espaço, quem leu a sinopse de O amor e seus fins pode imaginar estar diante de uma audiência pública em torno do divórcio do casal de personagens. Contudo, trata-se da sala de sua casa: é ali, na intimidade, que a dramaturgia de Wersom se desenvolverá.

Chegando de um jantar, entre comentários triviais, ela diz a ele que quer encerrar o casamento. Como em um drama moderno, a situação privada é tomada como ponto de partida para uma discussão social. A construção das personagens, sob direção de Fernanda Raquel, propõe uma certa oposição: ainda que se trate de uma dinâmica mais fluida, Scarpelli traz uma maior sobriedade mesmo nos momentos de maior tensão, enquanto Wersom caminha por uma composição ácida. 

O sarcasmo presente em algumas das intenções potencializa a camada subterrânea de O amor e seus fins: entre o debate do casal e os comentários com a plateia, há muito campo para a identificação, mas há também uma implicação crítica diante do representado. O amor e seus fins traz no próprio título a dualidade presente na encenação. Os “fins” abordados na cena não remetem apenas à finitude das relações, mas precisamente suas lidas com a ideia de finalidade.



O que se espera de um homem e de uma mulher cisgêneros, heterossexuais, brancos e burgueses? Um casamento de aparência sólida e feliz; filhos e bens que, no derradeiro momento da separação, devem ser divididos de forma civilizada. A direção de Raquel dialoga de forma provocativa com o texto de Wersom nessa proposição normativa e ocidental do que seria a civilidade: o casal dança, arrasta na mesa, se joga no chão, derruba cadeiras. E parece ser assim mesmo que se constrói, entre quatro paredes, essa civilização.

Ao mesmo tempo, a iluminação de Aline Santini delimita o corredor-sala onde a ação se dá. Luzes à pino, ribaltas e laterais: em O amor e seus fins, nem tudo é simples de ser encarado frontalmente. Enquanto a finitude é colocada como acontecimento traumático, a finalidade surge como um grande ponto de interrogação. Por que enquadramos e nos angustiamos com o enquadramento construído em torno de como deve se desenvolver uma relação amorosa? Por que insistimos em compreender o desenvolvimento de nossas relações de forma linear, da paixão inicial à institucionalização como matrimônio?

O amor, enquanto sentimento, surge nas delicadezas pontuais e nas tentativas possíveis de seguir juntos. Enquanto expectativa, corre no subtexto, entre provocações e comentários que reafirmam os marcadores sociais do casal e suas vivências dentro da cisheteronormatividade burguesa. Há uma sutileza na abordagem de O amor e seus fins: a monogamia é uma superestrutura que não se questiona diretamente, ainda que esteja implícita a todo momento – e, especialmente quando as traições vêm à tona.

No retrato íntimo de uma série de fracassos, a reprodução de uma situação comum pode acabar por proporcionar mais reconhecimento do que reflexão em sua construção de linguagem. Insistências e impossibilidades; convenções e instituições. O amor e seus fins trilha um caminho que, sabiamente, não resolve o conflito da cena. Diante das circunstâncias, resta apenas espaço para implosões, explosões e um constante não-saber.

[amilton de azevedo escreveu à convite da produção de O amor e seus fins, tendo sido remunerado por esta crítica. contato para parcerias: amilton@ruinaacesa.com.br. colabore com a produção crítica de amilton de azevedo: conheça a campanha de financiamento contínuo para manter a ruína acesa!]

serviço
O amor e seus fins
Temporada: 28 de outubro a 4 de dezembro, de sexta a domingo
Sexta e sábado, às 20h. Domingo, 19h 
Galpão do Folias - Rua Ana Cintra, 213, Santa Cecília
Duração: 60 minutos 
Classificação: 14 anos
Capacidade: 70 lugares 
Ingressos: R$ 40 / R$ 20 
Acessibilidade: Sim
Toda sexta-feira, sessão com libras.
Todo domingo, bate-papo com elenco e equipe. 

ficha técnica
O amor e seus fins
Dramaturgia: Cris Wersom
Direção: Fernanda Raquel 
Elenco: Cris Wersom e Rodrigo Scarpelli 
Cenografia: Simone Mina
Iluminação: Aline Santini
Figurino: Ozenir Ancelmo
Direção Musical: Gui Calzavara 
Comunicação: Pombo Correio
Produção: Catarina Milani 

Assistência de Produção: Karina Crossi 
Produção Administrativa: Mateus Lima

Operador de Som: Ivan Garro e Gui Calzavara
Operadora de Luz: Gabriela Ciancio  
Técnica de Palco: Priscila Chagas 
Cenotécnico: Jorge Ferreira Silva 

Fotos: Vitor Vieira 
Beleza Ensaio Fotográfico: Carla Martins 
Registro Audiovisual e Teaser: Poétika Produções
Ilustração: Victor Grizzo 
Tradução em Libras: Sabrina Caires