não parece, mas queima
crítica de “Mormaço – peça em quatro cortes”, do Teatro da Fronteira
foto de Anna Talebi Hudler
Figuras estranhas, variando de pés de pato à sapatos de salto alto, preparam um churrasco. Logo se entende que se trata de uma família, ainda que os laços e parentescos não fiquem evidentes. Carne saindo, cerveja gelada, hits na caixa de som. No que poderia ser uma laje – pelo desenvolvimento da peça, talvez caiba mais em uma varanda gourmet – o público é recebido, servido e abraçado em “Mormaço – peça em quatro cortes”.
Com equipe criativa e elenco extremamente jovem – cursam artes cênicas na ECA/USP – o que se vê em cena é uma tentativa interessante de pesquisa de linguagem autoral realizada pelo Teatro da Fronteira. A dramaturgia de Murilo Tiago se desenvolve de forma um pouco confusa em alguns momentos. Algumas escolhas da direção de Douglas Vendramini parecem por vezes óbvias; entre o didatismo e a afirmação assertiva do discurso pretendido, pode-se confiar mais na leitura do público. Quando, por exemplo, um a um, cada membro da família passa a ter em seu figurino (ou como adereço) bandeiras do Brasil, escancara-se algo que já estava apontado.
Para além do absurdo da fábula, apresentado em uma progressão interessante, a crítica realizada pela obra por vezes opera dentro de um campo explícito. Claro que, contrariando a velha máxima de Brecht acerca da necessidade de defender o óbvio, é importante lembrar que até ele, o óbvio, é um lugar em disputa; reafirmar o posicionamento, localizar muito bem de que família se está falando, pode tornar-se uma necessidade ética dos artistas.
A progressão dos acontecimentos se dá em uma encenação com elementos curiosos – e de difícil semiotização, por vezes, como no caso do sofá coberto de grama – e contemporâneos, como a transmissão ao vivo da câmera de um celular que, se no início parece apenas um recurso divertido, no desenvolvimento da peça se torna central – a escolha pelo take, neste momento, tarantinesco, serve bem à “Mormaço”. Numa relação realista, permeada por elementos absurdos, seja no figurino inicial, seja por momentos onde a realidade se encontra no limiar do crível – nesse sentido, não há nada que fale mais aos nossos tempos como uma ode desmedida e exacerbada ao bacon – as fronteiras da verossimilhança se expandem para além das bolhas criadas por cada um de nós. Em diversas ocasiões, ficamos com uma ótima dúvida: essas coisas de fato acontecem em alguma família?
No momento da grande revelação do espetáculo, ainda que dramaturgicamente frágil, opera-se a quebra de expectativa da obra, que busca redimensioná-la. A “tradicional” família, remoendo memórias e relações se revela cada vez menos tradicional. É interessante ressaltar que, com todo o elenco sendo muito jovem, não há a tentativa de emular fisicamente idades distintas, assim como não importa compreender precisamente quem é tio de quem; a atmosfera das relações familiares se instaura e isso basta. Numa possível aproximação, pode-se lembrar de uma passagem de “Titus Andronicus”. Aqui, no entanto, tudo o que se faz em família parece consentido e acordado, ainda que confuso.
Quando se fala em mormaço, a primeira visão é daquele dia, na praia, em que ninguém dá muito valor para o calor – e no final, todos acabam queimados. “Mormaço” é o churrasco de algum domingo de tantas famílias e suas relações tortas, falseadas e verdadeiras. Por mais que a revelação soe absurda e por tantas vezes seja difícil acreditar naquelas figuras, há algo de real e pulsante em suas relações. Também, ainda que existam certas escolhas discutíveis da direção, essa pulsação acontece pela química do elenco – que, sem dúvida, também deve permear a relação com o resto da equipe criativa. Grupo jovem, o Teatro da Fronteira demonstra potencial para seguir em pesquisas próprias de linguagem, trabalhando de maneira autoral e descobrindo seus temas e caminhos.