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os perigos e as potências de buscar a própria voz

crítica de “Nada Ortodoxa”, minissérie produzida pela Netflix.

[com colaboração de Andréa Martinelli na edição]

[texto com spoilers]

O contexto onde se nasce determina muito de uma vida. Uma fiação rompida, correndo ao lado de um poste, provavelmente carrega poucos significados para a maioria das pessoas. Em Nada Ortodoxa, a imagem inicial serve de síntese. A minissérie da Netflix acompanha a narrativa de uma jovem nascida em uma comunidade judaica ortodoxa em Nova Iorque onde o fato do fio não estar conectado a outro poste no lado oposto da rua carrega consigo efeitos extremamente práticos.

Significa que o eruv (mistura, em Hebraico) não está ativo. O ritual permite que a área delimitada por estes fios em postes — além de barreiras naturais, muros e edifícios — seja simbolicamente transformada em uma grande propriedade privada (reshut hayachid). Assim, durante o Shabat, os moradores da comunidade podem circular por esta área carregando coisas essenciais para seus afazeres sem incorrer em proibições ligadas à data sagrada.

Não é permitido levar uma série de objetos de um tipo de propriedade para outra — ou seja, da casa para a rua e vice-versa. Com o eruv inativo, judeus — especialmente de linhas ortodoxas — não podem sair carregando suas chaves e mulheres não podem levar seus filhos bebês em carrinhos, por exemplo.

Os fios costumam ser checados com frequência para a sua manutenção; o que permite a movimentação mais livre dos moradores da região durante o Shabat. Em Nada Ortodoxa, os limites do eruv confundem-se com os limites da vida da protagonista — o que parece justificar a escolha de fazer com que sua fuga ocorra em um momento onde o fio está rompido.

Prestes a sair do prédio onde vive para nunca mais voltar, é alertada pelas outras mulheres no saguão sobre o incidente com o eruv. Decidida, volta ao apartamento, tira as coisas de sua bolsa, guarda dinheiro e uma foto de sua avó em um envelope que esconde sob sua saia e desce novamente. Já não importam mais as proibições.

A minissérie criada por Anna Winger e Alexa Karolinski inspira-se na história de Deborah Feldman, autora de Unorthodox: The Scandalous Rejection of My Hasidic Roots (Não Ortodoxa: A Escandalosa Rejeição de Minhas raízes Hassídicas, em tradução livre). O livro narra o passado de Feldman, nascida e criada na comunidade Satmar de Williamsburg, bairro de Nova Iorque.

Os Satmar são uma dinastia de judeus hassídicos fundada em 1905 na cidade de Szatmárnémeti, Hungria (hoje, Satu Mare, Romênia). Após a ocupação nazista do país durante a segunda guerra — onde boa parte da comunidade foi dizimada — o rabino fundador do movimento, Joel Teitelbaum, mudou-se para os EUA e estabeleceu-se em Williamsburg. De lá para cá, os Satmar se tornaram uma das maiores dinastias hassídicas do mundo.

Há muito a ser observado acerca desta comunidade: Teitelbaum, dentro de seus estudos do Talmude, percebe o Holocausto como punição divina pelo não-cumprimento de três juramentos conjurados por Deus sobre o mundo — daí a base antissionista dos Satmar.

Dentre as tantas particularidades, destacam-se na minissérie a recusa à modernidade, percebido no isolamento e na inadequação dos personagens frente a elementos tecnológicos e, central na narrativa, o papel da mulher nesta organização social patriarcal.

Nada Ortodoxa reconstrói o ambiente opressor vivido pela autora enquanto ficcionaliza o presente de sua protagonista. O roteiro de Winger e Karolinski faz com que o público vá aos poucos conhecendo o mundo de Esty, interpretada pela expressiva Shira Haas, visto que a narrativa começa precisamente em sua fuga para Berlim. É uma escolha aparentemente ousada, considerando a distância entre a realidade dos espectadores e a desta jovem judia ortodoxa. Porém, possibilita que a construção da história se dê simultaneamente entre passado e presente: enquanto Esty aos poucos entra em contato com uma Europa multicultural, vamos também sem pressa conhecendo as intimidades da vida em Williamsburg.

O formato de minissérie, em quatro episódios, permite que Winger e Karolinski tomem o tempo necessário para cada acontecimento. Muitas vezes, é a fotografia de Wolfgang Thaler que conduz muito da narrativa — além da montagem de Hansjörg Weißbrich e Gesa Jäger que dinamiza o trânsito entre a fria Nova Iorque e a colorida e calorosa Berlim. A direção de Maria Schrader aproveita a simultaneidade dos planos, amparada pela potente interpretação de Haas, para construir a todo momento oposições entre as vidas de Esty.

Pois, como veremos no final, não há uma recusa contundente às raízes da protagonista — aliás, é linda a escolha de valorizar a língua iídiche. A questão que parece sustentar a minissérie é de certo modo simples: nem sempre o mundo em que crescemos é o mundo onde queremos viver. Em uma metáfora muito bem construída, que se torna óbvia apenas a posteriori, Esty é uma garota em busca da própria voz em meio às possibilidades que se apresentavam ao seu entorno e àquelas ainda a serem criadas.

Ao mesmo tempo, não há nada de simples em Nada Ortodoxa. A intrincada cultura, fundamentalmente religiosa, dos Satmar vai se desvelando entre seus mistérios e rituais. Alguns, secretamente belos. Outros, angustiantes; dolorosos. Nas quase justaposições de signos, estabelece-se um contraste entre opressões e liberdade: há um certo maniqueísmo neste sentido; um idealismo sutil lançado nos tantos possíveis da nova vida de Esty.

Um olhar voltado à verossimilhança pode encontrar certa dificuldade em acompanhar a trajetória da protagonista, considerando a facilidade com que se adapta à sua nova realidade, ainda mais considerando o isolamento vivido até então. Parece mais enriquecedor deixar-se acreditar pela narrativa; percebê-la quase como uma fábula. Assim, o que se testemunha é a potência que há no ato de saltar na direção de um abismo incerto, de ir embora de um lugar que apaga subjetividades. O salto dado por Feldman e por tantas outras, em tantos contextos de violências.

Feldman vive em Berlim até hoje; escritora, conta em seu livro que foi o contato com a literatura que a mobilizou para olhar além — contato, este, proibido e feito em segredo. Winger e Karolinski mantém a ideia da arte como combustível, mas muda a plataforma: Esty faz aulas de piano — e é sua professora que a ajuda com a documentação — e, quando chega à Alemanha, impossibilitada de encontrar a mãe, é em um conservatório que faz, literalmente, morada.

O conservatório, aliás, é um forte símbolo para o discurso de Nada Ortodoxa: no grupo de amigos de Esty, apenas um é nascido em Berlim. Como se aquela orquestra fosse uma anti-Babel; onde todas as línguas e culturas se entendem em partituras e no sublime da arte.

A relação com a memória é também um ponto nevrálgico no primeiro episódio — a diferença do olhar sobre o passado nazista da Alemanha vêm à tona na conversa rumo ao lago, e lá se desenvolve ainda mais. A fotografia de Thaler e a expressividade de Haas constroem um quadro que prescinde de palavras quando a protagonista observa uma tatuagem patriótica nas costas de um alemão.

No final do episódio, Esty retira seu sheitel (sua peruca) dentro do lago. É possivelmente uma das imagens mais impactantes da minissérie — que se torna ainda mais potente quando acompanhamos a ida da protagonista ao mikvá, o banho ritual que purifica a mulher após a menstruação. Ali, não resta dúvidas de em qual das águas Esty estava efetivamente se purificando.

Também acompanhamos Yanky (Amit Rahav) e Moishe (Jeff Wilbusch — que nasceu e viveu sua infância em uma comunidade hassídica) realizando seus rituais no quarto do hotel berlinense ao mesmo tempo em que Esty prova calças jeans. Quando os dois visitam o cemitério alemão para orar em um túmulo, ela está fazendo um ultrassom. Morte e vida, tradição e modernidade, prisão e liberdade: Nada Ortodoxa evidencia seu discurso na montagem de Weißbrich e Jäger.

Ainda assim, há algo cativante nas cenas que retratam o cotidiano dos Satmar. A sacralização da vida carrega uma beleza secreta quando observada à distância; de perto, as relações de Esty com sua família, seu marido — e a família dele — escancaram alguns horrores cotidianos vividos por uma mulher jovem naquele mundo.

Também, compreendendo que o centro da problemática de Nada Ortodoxa seja exatamente o fato de Esty ser uma mulher, é inteligente a forma que o roteiro compõe a figura de Moishe — e Wilbusch consegue lidar com este lugar fluido da personagem. Moishe é um renegado, como se vê desde sua chegada em Berlim. Ele joga, transa com prostitutas — além de incentivar Yanky a fazer o mesmo, porque, como afirma, a Torá é diferente na estrada.

Essa errância de Moishe não parece ser despercebida por seu rabino e por seus pares na comunidade. E é ela que faz dele um bem valioso para a comunidade. Leah (Alex Reid), mãe de Esty, chega a afirmar que sempre tem um Moishe. No enfrentamento entre os dois, fica sugerido que Leah vivenciou essas coerções em seu passado — aqui não é o seu mundo, você não pode me ameaçar.

Esty está grávida, e é esse o motivo para Yanky e Moishe irem atrás dela. O bebê pertence a eles. Aliás, é curioso notar que a gota d’água para a fuga da protagonista é precisamente o pedido de divórcio. Como se Esty, mesmo sentindo-se e sabendo-se diferente, estivesse focada em pertencer àquela comunidade. Mesmo passando pelas tantas violências — submetendo-se à consumação do casamento em uma cena onde efetivamente se vê um estupro marital — ela tentava verdadeiramente. O aviso da gravidez trazia um brilho no olhar; e então, o súbito desencanto.

As famílias Satmar de Williamsburg tem em média oito filhos. Não é difícil apontar, então, para a função das mulheres dentro da comunidade: não apenas o trabalho reprodutivo, mas a manutenção de todo aquele sistema enquanto os homens trabalham.

Feldman chegou a afirmar, em entrevista ao New York Times, que não conseguia pensar que havia escapado do patriarcado, visto que foram as mulheres que mais abusaram dela naquele contexto. Em Nada Ortodoxa, são raros os momentos em que vemos Esty se relacionando de forma positiva com alguma mulher Satmar. Em Berlim, ela antagoniza diretamente com Yanky e Moishe, de modos bem distintos.

Moishe carrega consigo as marcas de quem já viveu fora das regras opressivas da comunidade — e os privilégios por tê-lo feito sendo um homem — e confronta Esty com a dureza da realidade. Ele chega a afirmar para Yanky que com certeza ela está em perigo. A liberdade da mulher é um perigo. Para quem?

Rahav constrói um Yanky cujo olhar parece sempre perdido; o olhar de quem sempre ouviu como deveria ser e o que deveria fazer, mas na realidade não sabe nada do mundo — nem do que habita, muito menos dos tantos outros possíveis. Do casamento até o divórcio foi conduzido pela mãe e irmã; em Berlim, seguir Moishe o deixa constantemente confuso.

Mesmo em sua decisão de cortar seus peiots para tentar convencer Esty a ficarem juntos, ele segue sendo uma figura tremendamente deslumbrada com a vida — que talvez nunca se responsabilize ou nem mesmo tome consciência das violências que perpetrou, direta ou indiretamente, durante o curto casamento dos dois.

Quando Yanky pega o smartphone de Moishe — ou seja, passa a ter acesso à infinitude dos conteúdos da internet — sua cômica ação é perguntar para o aparelho onde está Esty. Quando ela acessa o computador na biblioteca do conservatório, sua primeira busca é uma pergunta sobre a existência de Deus. Em comum entre os dois apenas o fato de que ambos foram à Europa a procura da mesma pessoa: Esty.

A direção de Schrader — amparada pela fotografia de Thaler — constrói os quadros dessa busca com muita atenção. Berlim vai sendo apresentada ao espectador pelos olhos de quem nunca imaginou a existência deste outro mundo. É o olhar de Esty que conduz o tempo e o efeito do que se vê. Se ela chora ao ter seu cabelo raspado para o casamento, no banheiro da boate, ao passar o batom chamado, não por acaso, Epiphany, é elogiada por seu estilo.

O contexto onde nascemos define muitas coisas sobre a nossa vida. Raça, classe, gênero, cultura. Mas é sempre possível reinventar-se. A arte pode ser uma companheira no cumprimento dessa tarefa. Esty escolhe uma canção de Schubert para sua audição; An Die Musik, literalmente uma ode à música: você aquece meu coração para o amor / então me transporto para um mundo melhor!

Pois, para além de cercas reais e simbólicas, de uma realidade opressiva, há infindáveis possíveis para se viver. Depois de Schubert, Esty canta em sua língua materna, o íidiche. Antes de ver seus amigos chegando à cafeteria, ela observa a bússola, presente de sua professora de piano. É sobre carregar suas raízes mas encontrar o próprio norte em busca da liberdade; habitar o mundo em que se escolhe viver e ouvir o som da própria voz.