teatro

emaranhar-se no indizível

crítica de Na solidão dos campos de algodão, de Bernard-Marie Koltès, com direção de Eliana Monteiro e atuação de Lucienne Guedes e Mawusi Tulani

Quando Cildo Meireles apresentou La Bruja na 16ª edição da Bienal de São Paulo, em 1981, os 100 mil centímetros de fios brancos de algodão saídos da vassoura encostada em uma parede espalhavam-se por todo o pavilhão, passando inclusive pela entrada principal. Linhas, nós, teias. Já na exposição like a needle in a haystack (2014), no Kunsthal 44 Møen, Dinamarca, La Bruja tornou-se outra: os fios negros ganhavam maior densidade e seus um milhão de metros ocupavam as salas do expaço expositivo nórdico de forma maçica. Nós, teias, emaranhados, novelos. O que se esvazia e o que se preenche na solidão dos campos de algodão?

Em Notas sobre a paisagem, estudo de Daniela Amorim sobre o espaço em Na solidão dos campos de algodão e em outros textos de Bernard-Marie Koltès publicado na revista Questão de Crítica, a autora aponta para a possibilidade do uso específico da palavra deserto como categoria crítica na análise da paisagem poética em Koltès: o deserto enquanto sombra. Um deserto que se instala pela passagem das horas, ao entardecer ou à noite, quando no espaço não há mais trânsito corriqueiro e povoado, e também pela presença do Outro: o estranho é aquele que, enquanto respira, oferece perigo, e traz consigo o risco integral, que ele espalha pela paisagem como a sua sombra. E o deserto retira da paisagem a membrana do pertencimento



A encenação de Eliana Monteiro para Na solidão dos campos de algodão encontra na fricção entre a materialidade do espaço cênico e a performatividade inscrita nos corpos das atrizes Lucienne Guedes e Mawusi Tulani a emergência de um deserto cujas sombras se preenchem de sentidos como se emaranham os fios – teias-armadilhas e ninhos-acolhimentos. O encontro entre Cliente e Dealer contorna linhas retas e curvas dando voltas e voltas na indizibilidade do desejo. Não se trata de um conflito, mas de um total dilaceramento do que poderia se supor estável dentro da própria ideia de identidade.

No texto de Koltès, dois homens se encontram em um tempo-espaço do deal que não é exatamente descrito pelo autor: Um deal é uma transação comercial baseada em valores proibidos ou estritamente controlados, e que se conclui, em espaços neutros, indefinidos, e não previstos para este uso, entre fornecedores e pedintes, por acordo tácito, sinais convencionais ou conversação de duplos sentido – com o objetivo de contornar os riscos de traição e de trapaça que uma tal operação implica -, a qualquer hora do dia e da noite, independentemente das horas regulamentares de abertura dos lugares de comércio homologados, mas de preferência às horas em que estes estão fechados!

O que se negocia em Na solidão dos campos de algodão é uma espécie de Godot jamais anunciado, mas ainda que se possa compreender o objeto (ou sujeito) sendo oferecido pelo Dealer a partir de uma infinidade de leituras, não resta dúvida de que o não-dito está na ordem do desejo; ou, ainda, é o desejo em si. O não-dizer tanto dele quanto do Cliente se relaciona não apenas à sua natureza, mas também à relação que se estabelece diante deste Outro.

No projeto idealizado por Guedes e o produtor Leonardo Birche, a direção de Monteiro mantém no ar as muitas camadas de sentido oferecidas pelo texto, mas suas escolhas cênicas complexificam e materializam questões absolutamente concretas. Ao subverter o gênero das personagens e levar à cena duas mulheres, começam os atravessamentos políticos de Na solidão dos campos de algodão. Quando a Dealer é interpretada por Tulani, uma atriz negra, e a Cliente é Guedes, atriz branca, a performatividade de seus corpos, indesviável nas teatralidades contemporâneas, faz da obra uma espécie de poesia política interseccional, onde raça e gênero são motores para que identidades se choquem, ora irmanando-se, ora ocupando polos opostos.

A estabilidade das linhas retas por onde se aproxima a Cliente é logo tornada curva, emaranhada, incerta. Nos fios de La Bruja, existir se dá em processo de alteridade e subjetividades subjugadas de maneiras distintas se encontram no movimento instável do conflito. São muitas as solidões de duas pessoas, de duas mulheres; parecidas e radicalmente diferentes. No mar da brancura dos fios, racializa-se a branquitude em um jogo radical de outrar-se.

O desejo que se fala aqui talvez seja exatamente outro: a Cliente, sempre um eu, desejando não só entender um outro, mas sim estrangeirar-se ao compreender sua identidade também como produtora e produto da diferença. Infindáveis e impossíveis desejos de reconhecimento são embates suportados por corpo, luz, som, voz, emaranhados e palavras, e palavras emaranhadas, e palavras. Nesse quase manifesto, samples e referências surgem nas canções, nas formas de dizer o texto de Koltès, nas imagens desenhadas pela iluminação de Aline Santini (como quando uma composição parece remeter às mulheres solitárias de Edward Hopper) e na lida com os infinitos fios do desejo.

Tulani constrói teias como uma aranha prepara suas armadilhas; Guedes insiste em fugir delas, as corta, circula pelo espaço. A única luz dentro da cena (Santini utiliza moving lights instaladas ao lado de fora da sala da Praça das Artes), amarela, delicada, traz o acolhimento que só o calor do ninho oferece aos pequenos pássaros. O algodão faz-se macio para o pouso; mas é da luta que nasce o voo.

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ficha técnica
Na solidão dos campos de algodão

Texto: Bernard-Marie Koltès
Direção artística: Eliana Monteiro
Atrizes: Lucienne Guedes e Mawusi Tulani
Tradução: Silvia Fernandes
Iluminação: Aline Santini
Direção musical: Dani Nega
Figurino: Claudia Schapira
Espaço cênico: criação a partir da obra La Bruja, de Cildo Meireles
Coordenação de produção: Leonardo Birche e Renata R. Allucci
Assessoria de imprensa: Pombo Correio