cinema

as maneiras de existir em um mundo inconstante

crítica de “Mulheres do Século 20”, de Mike Mills, disponível na Netflix.

[com colaboração de Andréa Martinelli na edição]

[texto com spoilers]

Para contar a história de Mulheres do Século 20 (2016), o diretor e roteirista Mike Mills voltou o olhar para sua juventude; inspirado nas mulheres que o criaram — sua mãe e sua irmã — e nas experiências de amigas de sua geração, a obra carrega algo de autobiográfico.

O momento final do filme, onde Jamie (Lucas Jade Zumann) narra ser impossível descrever quem foi sua mãe, efetiva a obra como uma bonita homenagem de Mills. Mulheres do Século 20 passeia por um tom nostálgico sem se permitir anacrônico: na narrativa, o contexto de 1979 é fundamental no desenvolvimento da trajetória das personagens, pois o tempo em que vivemos define muito sobre nós. Mas as questões abordadas são muito maiores do que um momento histórico; o roteiro de Mills debruça-se sobre as diferentes buscas de sentido que passamos ao longo da vida.

Na composição do filme, não se estabelece de fato um protagonista. O jovem Jamie é o pivô da narrativa, mas as relações entre as personagens se entrecruzam ao longo da obra, enriquecendo-a e abrindo espaço para as ótimas interpretações do elenco. Zumann traz um ar entre o enigmático e o ingênuo para o adolescente Jamie; Elle Fanning compõe uma aborrecida e assertiva Julie, enquanto Greta Gerwig traz as frustrações e a complexidade de Abbie com uma delicadeza que não abre mão da intensidade.

Billy Crudup traz algumas pistas falsas que tornam mais interessante o carpinteiro e mecânico William, a única figura masculina minimamente próxima da criação do garoto. A interpretação de Annette Bening como Dorothea coroa um casting onde os papéis parecem escritos especialmente para tais atores e atrizes.

Na trilha assinada por Roger Neill, o punk rock da juventude contrasta com o jazz das décadas de 20 e 30, adequadas ao gosto de Dorothea. Além das canções, as composições de Neill criam paisagens sonoras fundamentais na condução do público pelas distintas atmosferas das cenas.

O olhar de Mills sobre a personagem de Dorothea — de algum modo, portanto, sobre sua mãe — é generoso na forma que aborda essa espécie de sotaque do tempo desta mulher de meia-idade. Sua casa, como que em eterna reforma, soa como uma metáfora do mundo em constante transformação e sua busca honesta e curiosa de compreender os tempos que passam.

Também, o carro do ex-marido que se incendeia logo no início carrega tons simbólicos: como se, naquele momento, os vínculos de Jamie com seu pai fossem totalmente encerrados. O convite de Dorothea aos bombeiros parece uma insistência na figura paterna — assim como talvez a primeira aparição de William. Mulheres do Século 20 aborda, sim, a masculinidade; mas por um olhar delicado de quem foi criado por mulheres diversas.

Dorothea chega a afirmar, em dado momento, que a história tem sido dura com os homens; que eles não podem voltar a ser o que eram e não conseguem descobrir o que vem por aí. Há uma complexidade muito interessante na personagem: pioneira em sua área de trabalho, fica chocada quando temas como menstruação surgem na conversa e pensa que estudar questões feministas pode confundir a cabeça de seu filho.

Durante o filme, alguns quadros e cenas funcionam como verdadeiras sínteses. Como no discurso de Jimmy Carter — o conhecido Crise de Confiança — onde, na sala repleta de pessoas, apenas Dorothea vê beleza naquelas palavras.

Ou quando, na fotografia de Sean Porter, acompanhamos Jamie andando de skate, livre; talvez uma das poucas cenas em que o jovem está sozinho em meio à essa busca por sentido que é a adolescência. O roteiro de Mills também traz pérolas: Dorothea inveja Abbie pois sente que nunca conseguirá ver seu filho como uma pessoa.

Ainda que fale muito da maternidade, Mulheres do Século 20 é uma obra que se volta não apenas para o momento da chegada da vida adulta, mas para os tantos amadurecimentos exigidos pelo caminhar da vida. O confronto intergeracional não aponta para anacronismos ou tendências reacionárias; mas por uma dificuldade de entender o outro dentro de sua própria história.

Nas narrações que apresentam o passado das personagens, há um constante cruzamento das vozes; uma busca de compreensão do outro sobre a constelação que é uma pessoa. Em cada personagem, uma pulsão de vida distinta; caminhos que partem de diferentes modos de habitar o mundo e as escolhas possíveis dentro de cada universo.

No momento em que Dorothea passa a narrar acontecimentos ainda por vir, Mulheres do Século 20 efetiva um dado de seu discurso que traz consigo um acalanto que também carrega certa angústia: não se pode conceber, ou mesmo imaginar, o que vai de fato acontecer no futuro.

Como Abbie diz para Dorothea, defendendo o pós-punk experimental do The Raincoats, é muito interessante o que acontece quando sua paixão é maior do que as ferramentas que você possui para lidar com ela. Não se trata apenas da crueza da música, mas das maneiras de existir em um mundo em constante mudança.